CAVALEIRO DA ESPERANÇA - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Ainda tenho os olhos úmidos. São quase sempre assim, desde aquele dia em que perdi minha liberdade do corpo e a inspiração da alma. Arrancaram de mim a possibilidade de caminhar entre o povo deste país e deles ouvir seus lamentos e suas esperanças. Tornei-me um problema para quem quer continuar dominando pessoas simples, que continuarão na miséria pela vontade deles. Dentro da prisão eles nos maltratam, torturam de formas variadas e tentam nos transformar em monstros, dilapidados e dilacerados de toda condição humana. Não conseguem, entretanto prender a liberdade dos sonhos e a possibilidade de voar na imaginação e através dela abraçar a todas as pessoas que nos amam e que amamos. Essa liberdade de sentir o cheiro do mato, da relva, da comida de casa e o frescor da brisa do mar. Preso por lutar pela liberdade. Uma ironia do destino eu estar aqui entre essas grades, nesta prisão fétida e imunda em que fui condenado a passar meus dias. E lá se vão meses, anos...

Nesta prisão tenho tempo de resto para poder pensar, escrever, planejar e sonhar com minhas ações quando puder colocar os pés fora deste lugar. E viajar muito. Gosto das viagens. Por enquanto, vagueio mente aberta, solta e livre por lugares que povoam minha alma e por pessoas de quem gravei sorrisos, lamentos e olhares múltiplos. Os olhares iam do desespero a grandes expectativas e esperanças. Marchamos rumo a esse país imenso, de esperanças igualmente gigantescas, nos vinte e cinco mil quilômetros percorridos. Foi o tempo mais emocionante de minha vida. A força e o vigor da juventude embriagava de entusiasmo nossas almas esfuziantes e sedentas por justiça, igualdade, liberdade e pão na mesa de todos os brasileiros. Em cada lugar, uma batalha. Em cada batalha uma vitória. A vitória final da nossa sonhada revolução socialista ainda não veio, mas virá, sinto-a presente e efervescente tal qual o sangue corre nas veias de um homem excitado pela luta. Da Coluna trago memórias de companheiros tombados e de companheiros vitoriosos. Trago os estudos tantos e as experiências variadas e cheias de lições ensinadas pelo nosso povo, que traz na alma os ensinamentos da vida, que nenhum livro nem a carreira militar puderam me oferecer. E os cenários, meu Deus, quão belos são todos eles! Como sinto falta do povo brasileiro!

Aqui na prisão a vida torna-se limitada e condenada a uma rotina dura dentro de um espaço possível que é extremamente insignificante, ainda mais para quem teve um mundo como limite. É com uma certa nostalgia que recordo da União Soviética. Tenho me lembrado muito daquele lugar aqui na prisão. Mesmo nas noites de verão, este lugar úmido é sempre gelado, possuidor de uma frieza humana por parte dos nossos militares e carcereiros que lidam conosco. Perdi minha patente, mas não deixo de ser capitão. Sou militar com orgulho em todo o meu corpo e em toda a minha alma. Esse frio agora do início de outono, faz-me recordar ainda mais da república soviética. Traz até mim o calor das pessoas que conheci e convivi, que muito me ensinaram e me deixaram pronto para enfrentar o perigo e me forneceram coragem para a luta. E recordo-me dela, minha amada Olga. Onde estará agora? Esse é um golpe em mim, maior que os golpes de Estado que enfrentamos. Um golpe tão duro quanto esta prisão e tão destruidor como o sonho não realizado de uma pátria livre.

Queria agora estar a seu lado, sentindo seu calor e desfrutando de seus beijos. E nossa querida Anita... Ah Deus, queria-a nos meus braços para oferecer todos os beijos do mundo, para dar a ela todo o carinho de pai, que esta reservado dentro desse peito feito prisioneiro na cela desta república de um homem só. Seus belos olhos são meu alento aqui dentro, e a esperança de receber novamente seu abraço, o mais guardado de todos, permite que eu não me entregue, continue sendo o cavaleiro da esperança, como me chama meu povo querido. Fecho os olhos e vejo Olga sorrindo, vindo em minha direção com nossa filha nos braços. Imagino Anita como a mais bela menina do mundo, tal como a mãe. Como pode um país negar a um filho o direito de conhecer sua filha e de acariciá-la? Cada vez mais sonho em voltar à luta e transformar o lugar que vivo.

Não foi porque uma tentativa não deu certo que vamos nos paralisar. Definitivamente não. O levante em Natal serviu para nos mostrar erros que jamais poderemos novamente cometer. Foi bonito de se ver, pelo menos no curto espaço de tempo, o rosto vitorioso dos companheiros. Mas tudo isso agora é passado. O futuro desta nação ainda esta por vir. Virão certamente dias melhores. Nesta cela passo os dias a meditar esperanças e curar feridas. São tantas, mas a que mais me dói é a falta dela. De mim arrancada brutalmente e levada de presente para aquele insano ditador nazista, com as bênçãos de Vargas, que me mantém nesse lugar. Não consigo mesmo compreender porque tanta maldade nesses seres humanos que de forma alucinada comandam tão grandes nações. Já se vão sete anos sem contemplar aqueles olhos claros e aquele sorriso de menina meiga. Perdida esta a infância de minha filha com os pais. É muita dor para um só homem, mesmo militar e guerreiro como eu. Nesses assuntos de coração, não tenho emoções revolucionárias. Tenho minhas dificuldades em lidar com essas questões, e graças a elas pude me aproximar de Olga e ganhar seu coração naquela viagem em que brincamos de marido e mulher. Relembrá-la acalanta minha alma e me refrigera o espírito ainda cravado de espinhos pela saudade.

Súbito chega o carcereiro sorridente com um papelzinho na mão. Brincando me diz ser um recadinho de alguém que eu esperava há tempos. Lembro-me como se fosse ontem. Meu coração disparou, num instante memorável de alegria por ter certeza serem notícias de Olga e Anita. Abri-o num misto de sorriso e ansiedade. Eram mesmo notícias dela. Ao ler as poucas palavras, senti as grades caírem, o chão transformar-se num labirinto vivo e esvaírem-se minhas forças. Olga estava morta, Anita com minha mãe. O nazismo fez dela mais uma vítima das câmaras de gás. Sentei-me no chão da cela e eu, Luis Carlos Prestes, sempre tão valente, não tive lágrimas para chorar. A dor era tão intensa, como uma espada assassinando a última que morre. Meu sonho de rever os olhos e sorrisos inebriantes do meu grande amor terminou. Cessariam as juras de amor eterno, novos filhos, a alegria dos encontros e o calor dos abraços. Restaram a dor e a saudade.

O frio do inverno chegou mais cedo. Veio no outono. Dias frios numa alma em coma. Assim tem sido meus dias nesta prisão. Agora preso também numa alma fria como este lugar úmido, fechado em mim mesmo, sem inspiração e sem vontade de continuar lutando. Sei que no futuro vou me reerguer e continuar a luta, minha e dela, em sua homenagem, em sua memória, como teria sido sua vontade. Para que a morte dela nem de nenhum de nossos companheiros seja em vão, para que nenhuma gota de sangue derramado tenha fique sem provocar mudanças. Mas por enquanto reservo-me o direito da dor e da descrença, da desilusão e do luto. Amanhã um sol brilhará, trará luz e calor e me fará renascer tal como uma planta ressecada espera por uma chuva. Por ora a escuridão da noite de lua nova, vista da janela do cárcere e contemplada com as mãos nas grades que insistem em reter os sonhos. A lua cheia chegará, e com ela todo o brilho e esplendor revigorantes, a enfrentar a grande escuridão da noite, silenciosa e cruel, mas nunca eterna.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 27/07/2011
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