Santa Maria Magdalena, Serv

SANTA MARIA MAGDALENA, SERV

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 27.07.11)

O assinante de jornais Joaquim Maria dos Reis Alves mora nas cercanias da Universidade Federal, em um bairro que pode ser a Trindade, o Pantanal, o Cór'go Grande, a Carvoeira ou a Serrinha. Sabe-se, no entanto, que sua casa fica na Servidão Santa Maria Magdalena do Cordeiro Santíssimo de Deus, Serva Humilíssima de Jesus. O nome é muito grande para as placas de rua, tanto quanto o foi na época em que as pessoas mandavam cartas pelo Correio: nunca houve envelope que suportasse tal tamanho, que abrigasse tamanho comprimento de nome.

Necessitou-se, assim, abreviar o nome da ilustre homenageada, o que desencadeou uma furiosa polêmica entre a vizinhança, circunstância que acarretou inimizades perpétuas e leais: Magdalena Cordeiro de Jesus, por exemplo, foi denominação execrada por Omero Luíz Anjos Santo, decano dos professores de Português das primeiras séries colegiais e morador do local: "Há de ser, então, Madalena Ovelha, em respeito ao idioma pátrio!", respeito que ele não perdoa ao pai ter faltado quando foi registrá-lo em cartório.

O único assunto que sempre foi unanimidade entre os moradores a partir do sexto mês da sua inauguração é a permanência da casa de "swing" no final da ruela, já na subida do morro, fazendo fundos com uma reserva silvícola permanente tal como instituído pelos edis da Capital em sessão marcada por grande euforia tanto do povo quanto dos seus representantes - esta talvez até maior do que aquela, o que causou profunda espécie.

A explicação para o fenômeno chegou tempos depois, quando confirmou-se o que todos ali já sabiam: às vezes na sexta-feira noite alta, às vezes no sábado, quando o jornal do dia seguinte já está na rua, reúnem-se ali, naquela casa no fim do caminho, políticos municipais, estaduais e até federais para decidirem, nas salas mais ou menos reservadas ou nos salões de atividades grupais, sobre os assuntos de maior interesse da população. Com a reserva florestal aos fundos da casa, preserva-se de vizinhos inconvenientes o sigilo das altas deliberações republicanas ali tomadas e que somente começarão a ser divulgadas na segunda-feira, quando já serão assunto antigo e superado na pauta da avidez por escândalos de parte do respeitável público.

Dona Therezinha Cardozo Gonçalvez, conhecida nas redondezas como Dona Zezezé, é uma entusiasta da casa no fim da servidão: "Uma bênção, criatura! Segurança total aqui. Qualquer cristão pode deixar a porta da casa aberta com dinheiro vivo solto em cima da mesa que ninguém ousa bulir nele! Pois hão de querer qualquer confusão ou contratempo tanto os donos do parque de diversões quanto os seus ilustres fregueses?" Feito porta-voz, ela fala o que toda a vizinhança pensa e sente.

O que muito incomoda o assinante Joaquim Maria dos Reis Alves tem a ver justamente com isso. Aos sábados, ao retornar da sua caminhada diária com a bicicleta (uma ofensa sofrida pelo nervo da perna direita impede-o de pedalar, mas não de andar), ele passa com as rodas do veículo por cima do jornal de domingo caso ninguém o tenha recolhido e só aceita lê-lo, como faz toda manhã, ao alvorecer do dia seguinte. E então reclama que as notícias da véspera, as deliberações da honorável casa ali adiante e que todo o mundo já conhece de ouvir falar (ou de ter presenciado), não são confirmadas pela edição dominical da folha local.

À tarde, cada domingo, ele senta e, em letras cultivadas por aulas de caligrafia, escreve sua carta de protesto para o jornal.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.

A partir de 01.07.2011, é candidato à Cadeira nº 32 da Academia Catarinense de Letras.