O sino da Alvorada
“Vamos colocar as quatro no internato”, foi essa a última frase que Silvia, a mais jovem, das filhas, escutou a mãe dizer ao pai, antes de se deitar. O internato veio ao encontro da necessidade daquela família. Poucos recursos materiais, o pai era funcionário do proprietário do internato, o que lhe garantia bolsa de estudos para todas as filhas, comida e cama boa.
Seu Luis não era professor. Era mecânico de automóveis dos carros do Dr. Pierre, francês de solo, mas brasileiro de coração. Mudara-se para o Brasil, ainda criança. Nunca mais voltara para a Europa. Fez seu império no Brasil, graças às inúmeras oportunidades que no país encontrou. Era generoso para com todos. Não reconhecia a necessidade do bolso dos seus funcionários, em compensação oferecia estudo gratuito a todos os filhos de seus colaboradores, no internato com boa reputação nacional.
Chegar ao colégio interno com chupeta na boca, impressionou a quase todos. Silvia, com apenas seis anos, era a mais jovem das internas. Olhos azuis, cabelos ruivos, curtinhos e lisos, pernas e braços finos. Alimentar-se sempre fora um problema para ela. Não sentia tanta fome para uma criança em fase de crescimento. Vitaminas de vários tipos faziam parte de sua rotina. A mãe era muito preocupada com a saúde da filha. “Será que existe criança anoréxica?”, pensava a mãe quando via os ossinhos das costelas marcados pela camiseta que colava ao seu corpinho. Suas irmãs estavam com dezesseis, treze e nove anos, respectivamente. Não tinha a menor noção do que estava lhes acontecendo.
“Para onde foram meus pais?”, perguntou Silvia, sem obter resposta da irmã mais velha. Não demorou muito, sentia o rigor daquele lugar. Tudo era extremamente organizado. Horário para se levantar, para o café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar.
“Quando posso brincar?”, pensava, visualizando de longe uns poucos brinquedos fixos ao chão, e que faziam parte do pátio do colégio.
Aquela não seria a infância dos sonhos para nenhuma criança, e Silvia não tinha opção. Tudo fora mudado e trocado de lugar. Passou a dormir separada das irmãs. Tinha uma monitora no quarto, e Silvia tinha que obedecê-la, antes mesmo do sinal da alvorada expulsá-la da cama. Sentar-se à mesa para as refeições era outra labuta. Via as irmãs de longe e, com discretos acenos, dizia um “oi” a cada uma delas.
Dona Joana, a cozinheira do colégio, sensibilizou-se com Silvia. Percebia em seus olhos, a tristeza do abandono forçado. Ela conhecia a história dos pais daquela criança, e sabia que eles não fariam o que fizeram, se não fosse a necessidade falar mais alto. Graças à sensibilidade da cozinheira, Silvia pode ter uma “mãe postiça”. Foi dessa forma que ela nomeou Dona Joana.
As semanas se passavam. Visitas eram apenas nos finais de semana. Voltar para casa somente nas férias. Ela perdera sua identidade, seu porto seguro. Perdeu o que algum dia esperava encontrar. Tudo se tornava frio e sem sentido. Aquela vida era pesada. Muita carga de responsabilidade, muita ordem. Uma infância apenas na cronologia do calendário.
O período de alfabetização transcorreu sem problemas. Silvia descobrira sua saída: os estudos. “Sim, devo estudar para ser alguém na vida”. Era isso o que mais escutava sua mãe dizer. Mas, o que significava ser alguém na vida? De qualquer forma, deixou mais uma de suas dúvidas para ser respondida algum dia, quando alguém dispusesse de tempo para escutá-la sem pressa.
Choros às escondidas, lamentações e resmungos eram divididos ora com seu duro travesseiro, ora com as árvores espalhadas pelo colégio.
“Como é grande aqui! Será que posso me perder? É melhor eu não fugir da mira das pessoas”, pensava Silvia ao dar um giro de 360°, com seu olhar triste, pela área externa do internato.
Os professores eram amigos e gentis. Alguns deles também viviam iguais a Silvia, na condição de internos. Dona Lurdinha era a sua amada e dedicada professora. Percebia a carência de Silvia, e a ela afeiçoou-se. Sempre que podia, dava um doce às escondidas à Silvia, que com ela partilhava estabelecendo, naquele momento total cumplicidade e intimidade.
“Se mamãe me disse que devo estudar para ser alguém na vida, ela também me diz que nada é para sempre!”, lembrava-se Silvia ao se deitar, naquela fria noite de junho.
O sinal da alvorada tocou mais tarde, na manhã seguinte. Não era domingo, tampouco feriado. O movimento era grande. Um vaivém de pessoas, sem rumo definido. Silvia levantou-se, caminhou pelo corredor que daria na sala do professores. Parou ao escutar a voz do Dr. Pierre.
“Sim todos morreram no acidente”, ela ouvira por detrás da porta. Correu até fatigar-se. Entendia tudo o que estava acontecendo. Sua amada, Dona Lurdinha, estava naquele carro, com mais outros quatro professores. Lembrava-se do “tchau” que ela lhe dera, antes de partir para o final de semana com seus familiares.
Dona Márcia fora apresentada, como a nova professora. Ao longe, Silvia mirava a lousa. “Será que ela vai me chamar para participar da aula?”, pensava com desejo de ser notada.
O sinal tocou. A aula acabou. Era hora de almoçar. A fila se formara, e mais um discreto “oi” era direcionado às irmãs.