Uma horta

Outro dia eu falei aqui sobre os mendigos do Sudoeste – que poderiam ser os mendigos de qualquer lugar, mas por lá eles são um pouco mais mendigos. Hoje eu volto a falar do assunto. Em geral, minhas crônicas andam muito mal frequentadas. Tenho uma amiga que, percebendo minha insistência em escrever sobre pobres e miseráveis, achou que eu teria alguma solução para o problema. Não, eu não tenho solução nenhuma. E provavelmente porque, assim como a maioria das pessoas, eu nunca pensei a respeito. Normalmente eu já estou muito satisfeito se nenhum morador de rua vier me importunar. E ao classificá-los como fugitivos da polícia, aproveitadores ou, no mínimo, pessoas maldosas, eu me sinto em paz comigo mesmo e com razões mais do que suficientes para não dar dinheiro algum.

Não há nesta atitude o menor conflito com a nossa vida cristã. Até sabemos que houve o Rei Salomão, dizendo que quem tapar os ouvidos ao clamor do pobre também não será ouvido. O Rei Salomão era muito rico e, se não morasse no Sudoeste, provavelmente moraria no Lago Sul. Mas bolas, isso faz muito tempo, e inclusive foi antes de Cristo. Talvez o pobre da época de Salomão fosse pobre de verdade – esses de hoje são todos mentirosos que querem viver à nossa custa.

Mas existem algumas pessoas no Colorado que discordam. É bom que se diga que o Colorado fica nos Estados Unidos e que nem por isso está livre dos moradores de rua. Pois um movimento local está querendo alimentar os sem-tetos, e com comida orgânica de qualidade. Os cidadãos estão sendo incentivados a criar pequenas hortas nos parques públicos da cidade e enviar toda a produção para os centros de assistência aos moradores de rua. Os próprios produtores tomam conta das hortas – e, consequentemente, dos parques. Dizem que isso vai aumentar o sentimento de respeito pelos espaços públicos. As plantações são feitas sempre em lugares estratégicos, para não comprometer a paisagem.

Além de ajudar os moradores de rua, os cidadãos do Colorado se dizem satisfeitos por contribuir com a preservação dos parques – e também afirmam que fazer horta é uma coisa muito prazerosa e que aproxima moradores de todas as idades. O próximo grupo beneficiado acolhe crianças e mulheres que não têm onde morar – é bom que se diga que crianças e mulheres também não têm onde morar. Assim está se fazendo no Colorado.

Eu não sei se existe um parque no Sudoeste, não sei também se existem pessoas que gostem de hortas por lá. Mas aí está o Parque da Cidade, o maior parque entre todas as cidades, e imagino que ele teria espaço suficiente para que pessoas bem dispostas fizessem algo parecido. Eu não espero com isso resolver o problema da mendicância. A iniciativa do Colorado é apenas uma das alternativas possíveis quando se resolve pensar no problema. Deve haver outras. Houvesse algo assim por aqui e seria impossível não ficar ao lado dos moradores do Sudoeste. Eles poderiam inflar o peito e dizer de boca cheia que não dariam dinheiro algum. O morador de rua se veria obrigado a fazer parte de um centro de assistência – e, ao menos para comer, não precisaria tanto da rua.

E como se não bastasse, comeria alimentos saudáveis – mais do que nós, que aproveitamos o fato de não precisar pedir comida para nos intoxicar em shopping centers.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 26/07/2011
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