IMAGEM DA FELICIDADE - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Ficou boa. Muito boa. Esse cientista Arthur Neiva é mesmo bom nesse negócio. A fotografia do jornal ficou muito bem feita. Quando o jornal chegou aqui com a foto, eu nem acreditei que éramos nós. São duas imagens, e eu nunca tinha me visto assim. Primeiro a da casa, com as nove janelas e a porta que dá para o quintal da fazenda. Nela a gente quase não se vê, ficamos todos bem pequenos, somos uma manchinha na porta da casa. É estranho olhar a foto e olhar o cenário real. Tudo colorido, as árvores grandes no fundo e o quintal de terra na frente, com a cerquinha de bambu e as janelas se destacam no cenário. São como olhos da alma da casa.

A outra não, ficou excelente a nossa imagem. Nela estamos todos nós. A foto enquadrou perfeitamente minha família. Eu em destaque, assentado no centro ao lado de minha esposa e rodeado pelos meus filhos. O meu olhar é para o infinito, enquanto todos olham para frente da câmera. Meu queixo ficou para cima, imponente, como convém a um bom coronel que não fraqueja, nem olha para baixo. É sempre o senhor de todos por onde se estendem seus domínios. Diacho, e não é que a mulher ficou esplendorosamente bela... Os meninos com roupas de missa ficarão guardados neste papel e em minhas lembranças. Quando eles crescerem e virarem doutores poderão lembrar a vida na fazenda e como eles eram quando crianças.

Aqui olhando esta imagem e o rosto de cada um, volto o olhar para o horizonte. Esse horizonte do sertão do Piauí que implora pela chuva infrequente e pela amenização desse calor desastroso que assola nosso chão. Esse horizonte é a perder de vista e tudo que eu alcanço com os olhos a mim pertence. São muitos os que nos odeiam e tramam contra nós, mas na verdade ser um coronel requer muita força e coragem. Tenho que ter muito pulso senão todo mundo perde o respeito e eu perco minha moral. Aqui as coisas funcionam na base do tiro. Na última eleição, meu candidato quase que perde por causa daqueles caseiros que não se contentam com o tratamento que recebem. Tem que ser a ferro e fogo mesmo, senão rebelam todo mundo.

As mulheres, elas não servem para dar opiniões, elas tem coração mole e acabam cedendo às vontades dos outros. Os meninos aqui já começam trabalhar cedinho. Ninguém tem folga não. Estou agora parado, observando o pasto ao longe e a plantação de milho aqui do lado. Severino é um bom homem, um trabalhador honesto que sempre que se aproxima de mim tira o chapéu em sinal de respeito. Vejo-o sorrindo lá longe, cuidando do gado. Como ele é feliz! De onde será que vem tanta felicidade? Estou eu aqui de frente à minha casa, contemplando minha imagem solene neste jornal e as terras que são minhas e onde todos me obedecem. Na foto não há um sorriso verdadeiro e tão desprendido como o dele. Sorrir é sinal de fraqueza, dizia meu velho pai, igualmente coronel. Um sorriso abre a janela da alma e convida todos a entrarem e fazerem festa, sentirem-se donos do lugar e assim deixar com que a gente amoleça o coração e permita alguns privilégios a muitos.

Não. Tenho que ter firmeza no rosto e na voz. Nunca chorar, nunca ter compaixão. Não votou no meu candidato? Bala, expulsão, queima a casa, ameaça... Essa é a lei do sertão. Talvez tanta dureza tenha endurecido minha vida. Não me lembro de me ver sorrir como agora o faço olhando as imagens. São momentos que me permitem por uns instantes mínimos esquecer e desligar-se dos afazeres tantos que existem por aqui e que me ocupam dia e noite. Nem mesmo para a mulher eu tenho tido palavras de carinho. Dormimos todos os dias na mesma cama e eu mal a cumprimento. Coronel só mexe com a mulher no dia que ele quer. Aqui eu sou a lei, eu sou o delegado, o advogado e o prefeito. Ninguém assina nada sem minha autorização. O coronel é a maior força da nação. Somos nós que seguramos e ditamos as regras da economia e da política do Brasil

Recordo-me do meu casamento e agora olhando os rostinhos dos filhos, do nascimento de cada um deles. Joana estava linda naquele vestido de noiva que foi o mais bonito desse sertão. Não foi fácil dobrar o velho Manoel, meu sogro. Os filhos são o que melhor existem num casamento. Talvez por isso eles sejam tão numerosos. Um coronel durão tem coração de carne e precisa ter momentos de alegria e de felicidade. O nascer de um filho ou filha era sempre a maior das alegrias que tínhamos. Joana deu à luz aos nossos nove filhos até o momento. Creio que Deus não nos concederá mais não. Maria das Dores, a mais nova não tem ainda dois anos, e é a alegria da casa.

Enquanto meus filhos vão voltando do almoço para o trabalho eu fico aqui, meio imóvel, apenas observando a foto e relembrando o dia feliz que aquela equipe de cientistas e pesquisadores nos visitaram. Observo o sorriso alheio e me fecho no meu. Acho que esse velho coronel Donnel do Parnaguá do Piauí esta se deixando virar um ser humano. Somos embrutecidos pela nossa condição de líder e nosso olhar sempre superior e intimidador, perpassando pelas eleições que temos que vigiar voto a voto, colocar capangas em todos os lugares para manter nossa ordem. Invejo a alegria do Severino, a despreocupação de minha mulher e a inocência dos meus filhos. Tenho medo do que dirão de nós no futuro. Será que meus filhos serão respeitados como eu fui a vida toda? Dois já estão em Teresina e vão ser doutores, ninguém quer mais ficar na fazenda. O mundo esta mudando e eu preciso continuar firme. Nem na minha idade posso me permitir sentir vontade de simplesmente viver a vida.

Dobro o jornal e vou levar para a mulher e os meninos. Seguro por um momento minha emoção e volto-me uma última vez para o trabalhador feliz, que agora canta uma canção debaixo desse sol escaldante, sem muitas preocupações para com o amanhã. O coronel ergue a postura e entra em casa. Com voz forte, firme e obedecedora, entrego a foto. Eles olham e sorriem, apontam, brincam, se alegram. Só eu não tenho esse direito. Chapéu na cabeça, monto o cavalo. Vou inspecionar o serviço. Sem sorriso, mas também sem lágrimas, sem semblante feliz, mas rosto amarrado, duro, firme. Todos vão me cumprimentar me chamando de “coroné” e eu passo adiante, como um ser especial, um ser divino, um ser extremamente superior... que não sou.

NOTA: É possível ver a foto com uma simples pesquisa no google (coronel donnel)

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 26/07/2011
Código do texto: T3119232
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.