VIDA NEGADA - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Hoje o dia não foi dos melhores. O mar não esta pra peixe, literalmente. Descarregamos bem menos hoje aqui. Resta-me às vezes ficar apenas admirando a beleza do mar, o ir e vir das ondas e recordando igualmente minhas idas e vindas por este mundo e por dentro de minha alma calada e humilhada nesta minha história tão plena para terminar assim. Do mar que foi a minha vida, restaram-me apenas os peixes, que eu não pesco. Olho para as ondas do mar e reconheço que não poderia viver longe desse azul que me enche os olhos e me cobre a alma de satisfação. Na verdade não era bem esse tipo de visão do mar que eu gostaria de levar a vida toda. Queria estar dentro dele, dominando-o, domando-o e vencendo cada tempestade e cada tormenta. Ah o mar! Quantas lembranças... Quantas alegrias... Quantos amores... O mar é o meu lar, minha casa, minha vida e minha família. Meus filhos e minha esposa nuca foram mesmo próximos de mim.

Hoje, com o trabalho pouco, posso me dar ao luxo de observar a imensidão do mar e o infinito azul que ao céu claro se encontra e se mistura, num cumprimento respeitoso e profundamente sagrado de dois gigantes da natureza. São extremos que conversam entre si e dividem o azul que faz com que nossas almas cansadas possam ter um momento de êxtase e de descanso de suas aflições. E minhas aflições foram tantas, que hoje, esse negro trabalhador, filho de ex escravos, que nunca teve uma chance de, verdadeiramente, conseguir um lugar digno no trabalho e no serviço a esse país vive seus dias nesta praça, com os peixes. Dediquei meus melhores momentos à minha pátria, dei sangue, suor e lágrimas e a mim retribuíram com o desprezo e a repulsa. Mas tudo bem, estou aqui ainda conseguindo sobreviver, não do mar, mas com algo que dele vem. Eu não poderia terminar meus dias sem contato algum com o mar, com suas ondas, com suas investidas e com suas calmarias.

Ao fundo, navios ancorados aguardam ordem para partir. Transporto-me para dentro deles lembrando-me dos anos dourados em que vivia dentro de um, dia e noite, como morada, ora aqui, ora do outro lado do mundo, ora num canto qualquer desse grande país. O mundo foi meu limite e o céu o meu teto. O mar, meu chão, minha soleira, minha música de ninar negada na infância pobre e sofredora. Quando a brisa do mar bate mais fresco ainda consigo recordar de minha cidade natal que há muito se encontra apenas dentro de meu coração e nas lembranças escritas na alma. Minha querida fazenda Coxilha, na cidade de Encruzilhada do Sul, lá embaixo, no último estado do Brasil. Ali tive meus sonhos e vivi minhas incríveis brincadeiras de criança inocente. Da inocência sobrou apenas a humildade que agora me faz um homem mais sereno na velhice. Dos sonhos, ah, que sonhos? Tão distantes de mim que não ouso mais recordá-los e os guardei num cantinho separado do cérebro, para deles não me recordar com frequência. Foram-se com as tantas ondas do mar nas viagens várias, para lugares diversos.

As ondas sempre me fascinaram. Servi toda a minha juventude na Marinha, desde meus quatorze anos e não alimento mais nenhum remorso por estar aqui jogado ao nada, trabalhando pesado, num trabalho cansativo e desgastante. O que me dói é ter tido a minha vida negada, minha história propositadamente esquecida, e a minha figura humana humilhada e desprezada depois de tantos serviços ao bem dos marinheiros e da história do Brasil. E é somente hoje que tenho consciência dessas circunstâncias, pois de quando em vez aparece alguém aqui me chamando de velho almirante e perguntando como estou, se tenho saudades do mar, da vida dentro dos navios...

Na verdade, cada um tem seu modo próprio de agir e de pensar os acontecimentos. Lembro agora d repórter, que outro dia foi em minha casa me entrevistar e colher informações sobre as nossas ações dentro dos navios ainda quando nos rebelamos contra os castigos. Ele me falou que eu tinha sido um grande heroi, quando eu o interroguei por que me perguntava tanto. Aquele dia eu dormi pensando em tudo o que nos tinha acontecido e me vieram à memória as lembranças diversas das longas e tenebrosas experiências pelas quais passei. Aqui na praça XV de Novembro, onde passo meus dias, nesta capital da República, volta e meia torno a recordar os tempos fatídicos da chibata. Conheci o mundo inteiro e nestas andanças apenas confirmei aquilo que eu já pensava e imaginava que estava nos humilhando por demais, nos reduzindo a situações degradantes e nos era oferecido tratamento tão injusto que não se aplicam nem mesmo aos animais. A história e os fatos se transformam e algumas pessoas insistem em querer que tudo permaneça como sempre foi. Já somos uma república e a escravidão, que meus pais enfrentaram um dia já havia acabado há tempos. Permanecia, no entanto os castigos vexatórios e ridicularizantes na Marinha, das chibatadas como forma de punição para os delitos. Era mesmo um preconceito contra todos nós, que vínhamos quase todos de famílias esquecidas pelo poder que nunca nos possibilitava uma oportunidade de ascensão social. As chibatas doíam demais no corpo, mas rasgavam e sangrava a alma, tal qual a nossa dignidade humana dilacerada pela vergonha. Como o país poderia tratar assim seus filhos, e ainda mais aqueles que a ele serviam? Nem legal era mais, a lei da chibata já havia sido abolida. O que acontece é que muitas pessoas ainda não conseguiram perceber que as todos são iguais e que não existe necessidade de se subjugar ninguém, seja lá por qual critério for.

Relembro as dificuldades vividas e o companheirismo dos colegas. Depois de tanto ver os marinheiros de outros países serem tratados com o respeito que todos nós também merecemos, era impossível ficar indiferente a tanta maldade e a tantas crueldades. Marcelino, companheiro bom, amigo pra todas as horas, ficou ali, desmaiado à nossa frente, ante a nossa perplexidade diante da cena grotesca e brutal das duzentas e cinquenta chibatadas que ele recebeu como punição. Ainda sem a sua consciência, o castigo brutal e avassalador continuava, ante o horror de nossos olhos impotentes naquele momento e nossa incredulidade diante da satisfação do algoz em aplicar esse castigo do tempo dos escravos. As marcas de feridas nas costas do companheiro impregnaram-se em nossas almas e nos fez, mais que nunca, prontos para o levante, que chamaram de revolta da chibata e pelo qual fomos todos castigados, mesmo diante da palavra de anistia dada pelo presidente.

Sinto na pele o frio da prisão, daquele natal de 1910. Injustamente preso, acusado falsamente de insubordinação, vi meus companheiros de cela morrer sem ar, naquela que representava a visão do governo sobre nós: homens a serem eliminados. Eu fico me perguntando em que nós incomodamos tanto. Não queríamos o fim de governo algum, nem a queda de um regime, nem tampouco estávamos fazendo uma revolução. Queríamos apenas o fim dos castigos. Chamaram-me de almirante negro e agora vem o repórter chamar esse pobre estivador negro esquecido a descarregar peixes na praça. Sou apenas um homem, que acuado, faria o mesmo que você faria: lutar pela liberdade e pela justiça. Sou apenas ex marinheiro de fato e navegante eterno de alma, observador perpétuo das ondas do mar, e tal como elas, ansioso para quebrar nas praias, brincar com os ventos e beijar a areia. É o que me consola, que faz aliviar as dores da alma e esquecer os castigos, cujas lembranças são apenas cicatrizes superficiais na pele e uma ferida no espírito, já em processo de cura.

O fato é que nos navios que vejo ao longe, ancorados, ninguém mais vai sofrer castigo ultrajante. Talvez eu seja mesmo um heroi, mas não um homem especial. Sou apenas um velho, João Cândido Felisberto, relegado ao trabalho forçado pela necessária sobrevivência a contemplar o mar e relembrar seus próprios momentos de glória. Os companheiros estão todos aqui dentro do peito, todos os sorrisos foram gravados, apagando as lágrimas várias que vimos escorrer de seus rostos.

Perdido em meus pensamentos, nem vejo a noite chegar. Ouço ao longe um amigo chamando-me pelo nome e a dizer que já esta na hora de irmos embora. Olho para o céu e vejo a lua minguante chegando de mansinho por entre as frestas do céu nublado, tal qual eu vivo hoje, sem brilho, discretamente, diferente do brilho da lua cheia no meio do firmamento em noites claras. Continuo meu caminho para a casa. O que o mar hoje pode me oferecer foi menos que o de costume. Mas foi o que pode. Contento-me com o que ele ainda me traz, além da saudade, da esperança, da certeza de que as ondas vão e vem, mas sempre voltam, ora mais suaves, ora agressivas, mas voltam e depois se vão novamente, e voltam... e vão...

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 26/07/2011
Código do texto: T3119222
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