Sufoco
Sufoco
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
TIBÚRCIO CAREQUINHA, O MAIS NOVO LOUCO DO PEDAÇO, havia chegado de outro sanatório não fazia uma semana. Viera transferido, pois aprontara além dos limites e o diretor não agüentava mais olhar para a cara dele. O sujeito não parecia um doido desses que se veem todos os dias, ao contrário, às vezes fazia coisas de gente normal, noutras perdia o controle e mordia os próprios olhos, arrancando da boca uma velha dentadura, e, com ela, dando a entender que mastigava os órgãos da visão como se tivesse saboreando um delicioso naco de carne. Tão logo se viu solto, no pátio, para o banho de sol, junto com os demais internos, achou, no chão, não se sabe como (talvez por descuido de algum funcionário), uma dessas facas enormes de cozinha, bem afiada, jogada num canto, perto do portão que acessava um imenso jardim. De posse dela, o primeiro que cruzou na frente resolveu correr atrás.
O infeliz era o Benedito Torrado, um pretinho de alma branca, que prestava serviços na enfermaria. Tibúrcio correu para cima dele, a arma na mão, atitude ameaçadora.
- Em guarda, vou te pegar para fazer picadinho...
Benedito Torrado, ao se deparar com o sujeito vindo em sua direção jogou para o alto umas caixas de remédios que trazia e danou a correr e a gritar:
- Socorro, pelo amor de Deus, alguém me ajude!
O alerta chamou a atenção dos demais. O pátio inteiro, repleto de doentes, se transformou numa platéia muda e indiferente, cheia de rostos desfigurados, a maioria com a boca aberta, alguns babando, outros dialogando com o vento, mas, no geral, todos sem denotar um pingo de calor humano.
Na verdade Benedito estava desesperado, temeroso, as faces petrificadas, as pernas bambas. Tibúrcio não queria saber de nada. Com a faca na mão esquerda, dava a impressão, não de um louco varrido, mais se assemelhava a um animal sanguinário à cata da sua presa.
- Por tudo quanto é mais sagrado: alguém faça alguma coisa!
Os que trabalhavam em outros pavilhões, bem como os da administração, pararam com seus afazeres, levados pelo clamor dos berros de Tibúrcio, e, mais ainda, pelo sufoco do pobre do enfermeiro. Sem exceção, todos arregaçaram as mangas e se puseram a acudir, ou pelo menos tentar obstacular que o aloprado transformasse o desditoso numa vítima fatal.
De um minuto para outro, uma pequena multidão corria, estabanada, de um lado para outro, na esperança de deter o desmiolado do Tibúrcio. Todavia, a criatura, com a arma empunhada, se esquivava ligeira, arisca, ao tempo que desenhava golpes no ar e por essa razão não havia quem ousasse chegar muito perto. O diretor geral foi acionado. Largou o café e voou para o hospital. Enquanto isso, nada parecia deter Tibúrcio e a sua faca de lâmina afiada.
- Vou te pegar! Vou te pegar!
A cena, não fosse por demais hilariante, poderia até ser filmada, e, certamente, daria uma boa vídeo cacetada, num desses programas de televisão onde seus apresentadores fazem chacota e ganham ibope exibindo as mazelas de seus consangüíneos, tirando, claro, a agonia do enfermeiro com Tibúrcio grudado nas costas dele, rindo, gesticulando e fazendo caretas esquisitas. A galera tentava, em vão, botar as mãos no maluco, mas o filho da mãe demonstrava uma agilidade com as pernas e um raciocínio muito rápido e acima de qualquer suspeita.
Benedito Torrado, por seu turno, não agüentava mais lutar, ou melhor, correr em círculos, voltando sempre ao mesmo ponto de partida, sem achar uma saída segura. Sentia que a vida estava por um fio, que os seus trinta anos andavam prestes a ser arrancados pelo corte certeiro de uma faca de cozinha nas mãos de um débil mental completamente fora de si.
Atônito e sem saída, se debulhava em lágrimas copiosamente. Quase sem ar, fizera xixi nas calças e não via como se livrar daquela figura hostil que, a cada minuto, mais e mais se aproximava, para lhe desfechar o golpe de misericórdia.
Certo que não morreria só. A turma de amigos, o diretor, a secretária do diretor, os estagiários da seção de informática e até dois seguranças se puseram em auxílio, mas ninguém, na verdade, se atrevia a peitar Tibúrcio e lhe tomar a coragem que carregava na mão fortemente armada pela presença fatídica da faca assassina. Acionaram a polícia militar.
Dezoito soldados fortemente armados partiram para o hospício.
- Nada de revolveres. Esse Zé Mané é apenas um louco. Não atirem, por favor...
O médico psiquiatra também deu as caras assim que telefonaram para o consultório dele:
- Doutor, o que fazemos?
- Tragam a camisa de força.
- Sem violência.
- Sem violência? E o que é que estamos assistindo aqui? Por acaso os dois mocinhos ali resolveram brincar de pique esconde?
Completamente baqueado e sem forças, finalmente o louco do Tibúrcio conseguiu encurralar o Benedito Torrado num canto em que não havia por onde escapar. Ou o cidadão morria de susto ou se deixava matar. Foi exatamente nessa hora que o enfermeiro perdeu o controle, a compostura, a vergonha. Sujou a roupa branca toda de bosta.
Vendo Tibúrcio, a dois passos dele, a faca reluzindo apontada em sua direção, caiu de joelhos e implorou:
- Não me mate amigo. Não me mate. Não lhe fiz nada. Leve em conta que tenho mulher e uma filhinha com menos de uma semana de vida para criar.
Na cauda de Tibúrcio uma massa de amedrontados estancara, sem ação, parada, colada ao chão, estática, sem respirar. Nem a polícia que deveria entrar em ação teve o bom senso de fazer alguma coisa útil que colocasse um fim definitivo naquele martírio.
Aconteceu, então, o inesperado, o imprevisível. Tibúrcio entregou a faca na mão trêmula do enfermeiro, e, na maior cara de pau, disse para o desgraçado:
- Tome. Agora é a sua vez. Eu saio desembestado e você dispara nos meus calcanhares!
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 58 anos é jornalista
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