Crônica da fome



Para uma enorme parcela da população sou companheira fiel. A esperança por si só não é potente o suficiente para me afastar da vida destas pessoas. A fé apesar de servir de sustentáculo para a própria esperança, tem se mostrado insuficiente para me fazer desaparecer.
 
Sou a fome. Sou perversa, como perverso são os responsáveis por me alimentar. Sou desumana, como desumano são os que se omitem e me dão espaço para procriar. Sou cruel, como cruel são todos que negligenciam em nome de uma hipocrisia que os fazem acreditar não serem culpados pela minha força e capacidade de maltratar tantas vidas.
 
Sou a fome. Fome de saber, fome de cultura, fome de amor, fome de lazer, fome de paz, fome de verdade, mas a mais cruel de todas, sou também a fome de alimentação, de humanidade e de dignidade humana, faço dos que me apodero simples restos abandonados de vida sem motivos e destino. Aliás, em muitos casos sou motivo de enriquecimento para alguns, de poder para outros e de falsa profecia para outros tantos. Faço carneiros, ou melhor carniças, faço seres sem capacidade de vontade própria, sem condições e sem horizonte a muitos que se tornam fontes de salários escorchantes, de sub-empregos, de votos, e de templos cheios.
 
Sou a fome que bate fundo na alma de tantos e que a sociedade como um todo finge não perceber, ou finge acreditar que caridade simples, principalmente com o que nos sobra pode me derrotar.
 
Apenas a verdadeira condição humana e social, racional, cultural e político-econômica podem me deter, mas ai eu corro livre, pois esta sociedade não sabe bem o que é ser verdadeiramente humano.

Arlindo Tavares
Enviado por Arlindo Tavares em 24/07/2011
Reeditado em 25/07/2011
Código do texto: T3115885
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