QUANDO SONHAR É POSSIVEL - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Lá ao longe as montanhas parecem sorrir como uma dádiva de Deus para seu povo. Estão anunciando a alegria do dia em que aqui chegamos, carregados de sonhos, carregados de uma alegria intensa como um êxtase profundo em que a alma supera o corpo num misto místico de prazer e loucura. Parece uma visão do paraíso em meio a este sertão seco e infrutífero que atravessamos, como um imenso deserto de dores e dissabores. Os desertos infrutíferos de muitos homens maltratados nas fazendas onde trabalhavam, aqui também encontram a terra sagrada e prometida. Atravessaram seus desertos e venceram suas sequidões dolorosas, amargas e malditas. As montanhas ao longe trazem uma paz inebriante e uma plenitude avassaladora que anestesia o corpo tal qual uma brisa suave e fresca no calor do sertão. Hoje percebo que não vai adiantar resistir. A fé é nossa resistência e Deus é dono do futuro e saberá qual destino nos oferecer. Os barulhos das bombas, canhões e das armas pouco chegam a mim. Não me preocupo mais. Calo-me diante da vontade do Pai todo poderoso. Só lamento as crianças que estão morrendo, inocentemente, porque apenas ousaram o sonho da liberdade e da dignidade. Aqui é o único lugar em que é possível sonhar. Aqui é o lugar onde a humanidade encontra-se com ela mesma na sua originalidade e na sua e na sua dignidade mais plena, tal qual Adão e Eva antes do pecado.

Nosso sonho não termina com essas bombas nem com a fúria dessa tal república, que investe como uma matilha sobre seu povo que dizem ter libertado. Libertado de quê? Agora o casamento diante de Nosso Senhor Jesus Cristo não tem mais valor, os impostos tiram de nós o pouco que a gente tinha e os soldados pisoteiam o povo como se fossem formigas invadindo uma casa. O povo que quer viver em paz e plantar sua comida no sossego, virou inimigo da pátria. Mas aqui não. Aqui a república pode ficar do lado de fora. O sonho aqui é de todo mundo junto. Ninguém aqui é dono de nada e tudo é dividido. Nosso Senhor quer o mundo assim. É contra o Todo Poderoso que essas bombas estão sendo atiradas. E Ele não vai permitir que o sonho acabe.

As torres da igreja são nosso símbolo. Enquanto elas resistirem, resistiremos também, e os filhos do demônio não penetrarão em nossa Belo Monte. Por que essa gente esta tão irritada conosco? O que fizemos a eles? Por que nos atacam? Vejo meu povo correndo e eu fico aqui na igreja rezando com minha gente ao som da destruição do que é material. Nossa fé continua inabalável e nossos corpos podem até morrer, mas estaremos na cidade sonhada por Deus, todos juntos, felizes, vivendo nosso sonho de justiça e de igualdade. Olho para o rosto de cada um e recordo do dia em que resolveram me seguir para fundarmos nosso céu na terra. Peregrinei desde aquele dia trágico em que minha mulher estava com o outro e eu resolvi servir a Deus. Deus tem lá suas formas estranhas de nos chamar a atenção. Já havia me chamado tantas vezes para liderar essa gente, mas eu não escutava. Foi preciso me esfregar no chão, com todas as forças para que eu pudesse escutar. Foi dolorido, mas escutei e hoje estamos todos aqui, guiados pela fé.

Saí pelos sertões com minhas pregações e levando frescor às almas aflitas dos homens e mulheres ressecadas como essas terras, que tem a esperança como uma chuva torrencial que cai de vez em quando nestas paragens. Cada olhar e cada sorriso era um prêmio para mim e um alívio para minha própria dor. Era na verdade, a certeza de que fui escolhido para estar aqui e formar nossa comunidade. Inimigos não faltaram. Diziam que eu sou sujo, que minha túnica azul é ridícula, que meu cabelo não tem cuidado algum... bobagem. Quem se importa com essas coisas? Meu tempo não é para mim, é para os meus irmãos, para dar a eles uma palavra de conforto e um alento para a alma. Cuido deles, de mim cuida Deus.

Inimigos eu fui colhendo pelo caminho. Alguns padres estão indignados por eu fazer pregações e arrastar as multidões atrás das palavras que não são minhas, mas do evangelho. Eu não estou concorrendo com ninguém, mas para quem viveu bem e aprendeu a ler nestes sertões, nada mais que nossa obrigação de ajudar as pessoas a carregarem seus pesados fardos que os fazem ficar encurvados pelo peso da vida. Ouvindo os estrondos do ataque à nossa cidade, relembro com certo egoísmo de mim mesmo, e volto à minha infância pobre do Quixeramobim, tão distante daqui e relembro meu pai me ensinando a trabalhar no seu comércio e a construir casas. Eu queria ter sido sacerdote, mas a morte do meu pai me obrigou a seguir um caminho diferente. Mas certos eventos e a vontade de Deus são precisos e Ele nos prepara o caminho. Fui professor e ensinei muitas crianças a lerem. Eram sorrisos valiosos, os primeiros que pude oferecer. Dali saí, desiludido com a traição e fui reunindo pessoas, que através de minhas palavras encontravam refúgio para suas almas aflitas. Peregrinamos até chegar aqui e montar nossa cidade sagrada.

Os inimigos já nos atacaram várias vezes, e é com muita dor que vejo hoje muitos dos nossos mortos, corpos espalhados, cabeças cortadas, sofrimentos vários. Meu Deus, por que nos impedem de sonhar? Não sou homem santo, como dizem os jornais, nem sou louco. Sou um sonhador e sonho coletivamente. Nosso sonho é concreto e a república vem destruir com canhões, a nós, que não temos inimigos e apenas nos defendemos das investidas. Aqui estão apenas gente simples, do sertão, ex escravos que a tal república não ofereceu lugar algum. Sou o único que não tem o direito de temer, mas por dentro da alma uma angústia me aflige e uma dor sangra a alma ferida pela raiva inexplicada de nós, que não fizemos mal a ninguém. Eu não tenho culpa se aqui se achegam pessoas vindas das fazendas em que são maltratadas pelos seus patrões sem piedade. Aqui são todos bem vindos, são todos recebidos com carinho, de braços abertos para engrossarem nossa cidade.

Saio da Igreja para ver como esta nosso povo. Vejo um cenário de guerra e choro por dentro, para não demonstrar a meu povo que eu sou confiante em Deus, que não desanimem de sua fé e que Ele esta conosco. Mas o que se passa diante de meus olhos é uma imagem do abismo que vejo nos destroços das nossas casas, destruídas, já com soldados invadindo e saqueando. Meu povo resiste na fé. Mais uma vez observo o rio, as montanhas sorridentes e vou para minha casa. Uma dor no peito me força a deitar-me serenamente, aguardado a vontade de Deus que se concretiza. Eu não a compreendo, mas Ele sabe o que faz, embora nem sempre eu pense que assim devesse terminar. Ainda olho num consolo para as mulheres que choram a mim. Mas os inimigos não vão me destruir. Deus não permitirá. Eliminar Canudos, como eles chamam nosso Belo Monte é uma questão de honra para o governo que não reconheço como legítimo e deixado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu, Antônio Vicente Mendes Maciel, ou apenas Antônio Conselheiro, como meu povo carinhosamente me chama, rendo-me à vontade divina de eliminar nosso lugar santo, para depois renascer em outros lugares. Destrói-se uma cidade, matam seu povo, mas não podem conter o sonho. Ele está impregnado na alma de uma gente que nunca se permitiu ser escrava ou subserviente.

Ouço gritos. São gritos de pavor que contrastam com a serenidade em que minha alma ora se encontra. Vejo se aproximar meu fim e agradeço ao bom Pai a vida que tive e as oportunidades que me foram concedidas para que eu pudesse agora compreender que minha missão não foi fazer perdurar uma cidade para sempre, mas plantar um sonho que não morrerá com bombas e com ataques de pessoas que são incapazes de compreender que viver junto, viver bem e viver com dignidade, sem querer ser superior aos outros traz para as pessoas uma grande satisfação pessoal e uma alegria que não é capaz de ser comprada por nenhum tipo de bem material. Os gritos agora se intensificam, pois as bombas estão cada vez mais próximas de nós. Alguém vem gritando que as torres caíram. Era o sinal de que Deus permitirá o fim da cidade. Mas é também o sinal de que o sonho continuará, pois Deus não deixará desaparecer sua memória e não ficará silente ante a destruição de sua casa.

Num último estouro ainda consolo as mulheres penitentes que rezam por mim, por nós, pelo nosso descanso eterno. Nossa cidade se muda para o infinito e vai conosco para o céu. Estaremos todos juntos na pátria prometida, a cidade definitiva, nosso Belo Monte celestial, tão feliz quanto nossas montanhas, tão sublime quanto nossos sonhos, tão real quando nossa terra, tão concreto como nossos ideais. Serenamente partiremos, peregrinaremos como fizemos por esse longo sertão, ante as secas da amargura e o sol escaldante, agora ante a fúria de insanos e a selvageria de homens incapazes de compreender que a vida vale a pena em cada segundo, e que cada um pode ser feliz à sua maneira, sem prejudicar ninguém. Que Deus tenha misericórdia das almas que partiram na luta, dos soldados que nos atacam e de mim, seu humilde servo nesta terra. Fecho os olhos e revejo minhas montanhas, o cenário mais belo do sertão, o lugar dos nossos sonhos, nossa bela Belo Monte, da utopia sertaneja de homens livres, como nunca se viu neste país. E apenas me calo, num silêncio orante, penitente, misericordioso. Pai, recebei-nos em seus braços. Amém.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 24/07/2011
Código do texto: T3115246
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