GENTE OU PERSONAGEM

Quando se mistura vida com literatura, sem se avisar de tal fato aos seres nele envolvidos, gente acaba por virar personagem, com todas as terríveis implicações e caminhos sem saída consequentes desta escolha.

Vítima do processo, olho-me no espelho e não consigo lembrar do meu rosto, nem do meu nome, nem do romance, conto ou poema a cujas páginas pertença, e pior: sei-me igualmente coautora e cúmplice de mesmo crime, do crime de haver condenado também outro ser a cumprir o destino de personagem, personagem a se olhar no espelho e a procurar em vão pelo próprio rosto, pelo próprio nome, pelo poema, conto ou romance a cujas páginas pertença, romance, conto, poema ... texto de gênero indefinido, pela página, enfim, na qual se encontra encerrado, tanto quanto sua cúmplice coautora, ambos condenados um pelo outro à prisão perpétua, por idêntico crime; ambos em calabouços fatidicamente apartados; ambos a ansiar, em Agonia, por alguma Saída, quem sabe através do Perdão Mútuo, sabendo ambos que este Perdão Mútuo certamente os libertaria, mas ao preço mais terrível de todos os preços: o preço do irrecorrível e mútuo Esquecimento.

Eu, coautora e cúmplice, pergunto: Há alguém de nós que REALMENTE deseja esquecer? Esquecer AGORA? Esquecer PARA SEMPRE? Para mim, para me sentir real, minimamente real, para ao menos recuperar algo da ilusão de ser real, tudo o que eu deveria querer buscar e perseguir seria o ESQUECIMENTO ONISCIENTE, ONIPRESENTE, ABSOLUTO COMO DEUS. Seria, se tal busca eu quisesse empreender, de verdade, em verdade, mas, não tenho, não me restam forças para tal querer.

Republicação, com algumas alterações no último parágrafo, na manhã de 23 de julho de 2011.