Cotidianos

O dia começa como todos os outros. O horário nada importa porque o tempo que passou foi sem dúvida melhor aproveitada do que o que vem pela frente. Sento-me a máquina e dou vida a meu dia, ligo a conferencia e já estão todos lá.

— Eae Mike, blz?

— Beleza, vai jogar?

— Sei lá, acabei de acordar.

— Vou te chamar no game.

— Ok.

Os jogos são refúgios interessantes. Encontro diversas pessoas em condições idênticas, talvez piores, do que as minhas. Não sabemos o que fazer, as vezes até sabemos, mas não temos condições e isso basta para que descontemos no nosso próprio tempo tudo o que ele vem tirando de nós. Mike é um caso muito bom, gosto dele. Diz que tem namorada, amigos, dinheiro, estuda, trabalha e gosta de ficar sozinho em casa, sujeito contraditório. Gosto do Mike.

A verdade é que Mike não tem nada do que ostenta, também não poderia, eu normalmente durmo de madrugada e Mike prossegue jogando. Eu acordo ou permaneço dormindo, agora não sei, mas Mike ainda está lá. Não é dos piores jogadores que eu encontrei até agora, ele tem classe e isso é difícil de encontrar. Os tipos durões dos jogos são sempre os que não admitem perder e Mike adora quando o jogo está impossível de ser ganho. Eu e Mike nunca perdemos, mas ao inicio de cada jogo escolhemos as piores opções. Nos impomos a derrota e saímos sempre vencedores, talvez seja um reflexo da vida este tipo de atitude, quanto mais real for o jogo mais divertido será enganar o tempo, a final amanhã ou depois ele irá consumir todas as nossas memorias.

— Bartuka, tem certeza que você vai escolher esse?

— Não.

— Ok.

— Você acha que não está na hora de pararmos?

—Com o que?

—Com esse jogo, oras.

—Ainda não, por que?

— Não tem mais tesão.

— Perdeu a pegada?

—Foi.

—Até que demorou mais dessa vez, não foi?

— Com certeza. O jogo é bom. Tem um bom desenvolvimento.

—Pode crer.

—Vou passar ai na sua casa e agente bebe algo e joga ai.

—Demoro, quer que eu vá te buscar de carro?

—Nem, vou andando. De boa.

—Beleza, vou solo aqui então.

— Pega esse meu e finge que é um novato. É sempre divertido, os caras ficam uma fera.

— Beleza, vem logo — disse Mike sorrindo.

Usualmente fazíamos isso, o jogo consiste em 3 jogadores contra outros 3. Começamos sempre saudando nossos adversários e os tipos durões se revelam imediatamente. Idiotas. Não percebem que todo o jogo não se resume apenas em sorte, temos de superar a ambição, a paciência, o medo, ou seja, a natureza humana é o maior inimigo em questão. Vença você mesmo e o seu adversário será consequência.

Mike era um mestre na defensiva.

— Não vale apena se arriscar quando a vitória esta garantida bem em minhas mãos — Dizia Mike sempre que questionado sobre seu estilo.

Já eu era considerado um insano, talvez até fosse, mas eu sabia bem utilizar toda essa loucura acumulada. Adorava partir pra cima e ver no que dá. Que fique bem claro, nunca avancei sobre um oponente sem uma carta na manga, não sou idiota e adoro quando me tratam como idiota. Idiotas. Porém em alguns dias eu era o retranqueiro e Mike o Insano, essa troca de personalidade sempre fora muito engraçada entre nós, tentávamos imitar os movimentos um do outro. Convivência é algo fantástico ou te mata ou te ressuscita.

Eu e Mike era o suficiente, normalmente, nesse jogo. O nosso terceiro companheiro era sempre adicional, se ele fosse bom o jogo estava ganho, se ele fosse ruim o jogo estava ganho. O que se alterava era quanto tempo iria demorar para o jogo estar ganho. Nos conhecemos a alguns anos e Mike foi parte essencial na minha vida, talvez eu arruinei a vida dele ou ele a minha. Sempre fomos arruinados.

Cheguei à casa de Mike e já fui logo entrando, como sempre ele estava no quarto. Levei duas cervejas.

— Mike, que tal a gente procurar outro game?

— Porra, era sério?

— Era.

— Beleza. Eu vou jogando aqui enquanto você procura alguma coisa nova, tomara que tenha algo bom por ae.

— Beleza.

Não existia nada pior do que o período de recessão. Este momento ocorreu apenas duas vezes conosco, perdíamos a pegada pelo jogo e ai começava a caça as bruxas. Quando não encontrávamos nada novo, bom ou ruim. Ficávamos sem nada, só a bebida como alivio. Para quem está acostumado com bebida e jogos temos de abusar de um para compensar a ausência do outro.

Não havia encontrado nada, infelizmente. Saí do quarto e trouxe outra cerveja. Mike me olhara com aquela cara de que outro período de recessão estava por vir. Eu não disse nada, me sentei na cama de Mike, me encostei e fiquei ali bebericando minha cerveja.

Adorava conversar com Mike, a primeira vista ele era um cara qualquer. Apenas mais um rapaz nesse mundo perdido. Mas quando bebado beirava a genialidade. Sempre me surpreendia com teorias e relações lógicas impressionantes, no meio destas eu dizia:

—Mike.

—Que é?

—Você é um cara de sorte.

— Ah é? Como isso?

—Sou dos poucos caras que entendem o que você acabou de dizer.

— Pode crer. Você é um cara de sorte.

—Sério?

—Sim, sou o único cara que fala algo útil para que você tome seu tempo tentando entender.

— Hellz yeah, baby. Somos caras de sorte.

A verdade era que eu e Mike tínhamos a sorte de não se importar com muita coisa. A vida era simples, mas triste. Tínhamos a certeza de que aquela vida de jogos e bebidas não poderia durar para sempre e mesmo assim não tocávamos no assunto. Era como uma promessa intrínseca na clausula da amizade. Nossos pais viviam dizendo que estávamos ficando viciados. Que precisávamos de tratamento. Aquela masturbação mental poderia representar a morte individual de qualquer pessoa, mas o que afeta um homem pode não afetar outro.

Ficamos nesse ritmo até acabar as cervas. O jogo já havia sido retirado e nos concentrávamos naquela água milagrosa abençoada pelo álcool. Já era madrugada enquanto víamos vídeos e reportagens engraçadas. É fato que assuntos sobre religião, politica, filosofia só são introduzidos nas pessoas quando o teor alcoólico atinge um certo nível. A essa altura eu e Mike já tínhamos migrado para a vodca a horas.

Gostávamos de nos fingir de bêbados. Eu vira Mike bêbado uma vez e ele me vira bêbado apenas uma também, nas demais estávamos felizes demais constatando que por mais que continuássemos bebendo nunca iriamos apagar. Éramos atores. Dos bons

A verdade era que eu tinha certeza que num futuro bem próximo nós iriamos descobrir algo que estava muito claro. A saída era tão obvia que não conseguíamos enxergar ainda, talvez fosse preciso mais tempo, mais experiência de vida ou apenas uma dica, seja o que for eu sabia que não seria na casa de Mike que encontraríamos.

—Mike.

—Que? – disse Mike com aquele sorriso de que só a convivência é capaz de compreender. Sabia que vinha algo.

—Vamos sair andando por ae?

—Você tem dinheiro?

—Acho que dá para tomar mais umas, leva essa garrafa ai na bolsa.

—Beleza, vamos por onde?

—Sei lá, vamos só andar.

Bartuka
Enviado por Bartuka em 24/07/2011
Reeditado em 17/11/2012
Código do texto: T3114909
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