Desespero humano

Tenho o péssimo hábito de ler livros inteiros na própria livraria. Não romances, mas livros de crônicas. Em quatro ou cinco visitas, termino a leitura e saio tranquilamente, sem deixar tostão algum para os vendedores. Isso porque constato na prática aquilo que escreveu certa vez o uruguaio Eduardo Galeano: “A polícia não precisa proibir os livros: os preços já os proíbem”. E como me sinto proibido de comprá-los, e como existem cadeiras e sofás que, penso eu, estão lá justamente para isso, apenas sento e leio.

Atualmente estou lendo um livro de crônicas do Ruy Castro, publicadas anteriormente na Folha de São Paulo. Ruy Castro possui 1777 caracteres para escrever a sua crônica. Eu, que também escrevo em jornal, tenho 3200, o mesmo número que tinha o Moacyr Scliar. Afora o talento, a única coisa que me difere desses cronistas é que eu não escrevo para a Folha de São Paulo, mas para um pacato jornal do interior de Santa Catarina.

Pois eu estava exatamente lendo as crônicas do Ruy Castro na Saraiva do Pátio Brasil quando fui interrompido por um homem meio desajeitado, e que não devia ter ainda os seus trinta anos. Perguntou-me onde era o centro. Centro, em Brasília, apenas espírita. Disse-me ele então que não era daqui e queria saber onde havia comércio na cidade sem ser em shopping. Provavelmente ele não reparou que eu estava vestindo uma camisa do sofrido Paraná Clube, pois então me tomaria como outro turista. Falei que em frente ao Pátio Brasil existe justamente o Setor Comercial, mas que, como era domingo, não devia haver nada aberto. Ele ouviu, agradeceu, e então falou o que queria realmente.

Perguntou-me se eu costumava ler livros de filosofia. Imagino que ele tenha reparado nos meus óculos, e me viu tão concentrado na leitura que logo concluiu, muito equivocadamente, que eu devia ser leitor de filosofia. Eu disse que não, e então ele quis me apresentar um filósofo. Tirou da sacola um livro comprado em outra livraria. Era uma coletânea de artigos filosóficos. Mostrou-me um texto do Kierkegaard, que falava sobre irracionalidade, ou algo do tipo. Passou-me o livro e, provavelmente, queria que eu lesse. Folheei as páginas e disse que já havia ouvido falar no Kierkegaard – na verdade, foi mais do que isso, pois cheguei a ler as primeiras páginas do seu “O Desespero Humano”.

Foi numa época que eu andava realmente desesperado, tentando ler coisas altas e nobres. Cheguei mesmo a emprestar a “República”, do Platão, sem jamais ter lido mais do que algumas frases soltas – é provavelmente por isso que não me entusiasmo com os projetos de repúblicas sulistas. Mas essas minhas malsucedidas experiências com a leitura de filósofos, e mais algumas observações empíricas sobre a pouca coincidência entre a felicidade e a vida desses sujeitos, foram suficientes para que eu não demonstrasse muito interesse ao meu amigo. Logo lhe devolvi o livro, concordando que devia ser muito bom.

E então voltei ao meu Ruy Castro, não sem antes prestar atenção nos livros que o homem pegava na prateleira. Pude ver Nietzsche. Penso ter visto também um do Freud. E tenho certeza que pegou para ler “A Imaginação”, do Sartre. É um homem que gosta de ler coisas altas, e que pensou por um momento que eu também gostasse. Antes de sair, pude ver ainda que pegou alguma coisa da Clarice – e acelerei então o passo para fora da livraria.

Não, meu amigo, eu não leio coisas altas. Leio a crônica, que é a filosofia de quem não tem muito a dizer, e que, mesmo quando tem, normalmente não fala a sério. E vivo tentando captar momentos e personagens, assim como você, para ver se consigo descobrir alguma coisa simples, bonita e necessária, e que tenha escapado dos mais sabidos filósofos. Que, convenhamos, são todos tristes demais.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 23/07/2011
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