MUDANÇAS IRREAIS - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Meu Deus, o que fiz? Passo os dias a contemplar o caos e as constantes mudanças que aconteceram nesse país em tão curto período de tempo. Contemplo as estrelas nesta noite quente de verão em que recebo este telegrama que me fez tremer todo o corpo num sentimento de culpa e de impotência diante de tal fato. Não posso negar de que me causa tremenda comoção receber este papel com palavras capazes de sangrar a alma e ferir um coração cansado e abatido pelos atos últimos de minha vida tão cheia de glórias outrora. Ele se foi, e com ele vai-se também uma parte de mim. Queria eu poder cumprir minha vontade de acompanhar o caixão do velho imperador, meu amigo, a quem hoje me sinto como um traidor sem causa, um homem que realizou atos inconvictos. Pedro II esta sendo sepultado longe dos olhos desta nação que tanto amou e longe de mim, seu amigo, hoje talvez diga infiel.

Boatos, notícias fantasiosas e ameaças inexistentes. Tantas foram que me forçaram a proclamação da república, que claro, não era de fato uma verdade confirmada minha. Sentindo-me acuado deixei-me ser usado pelos republicanos como o homem que o Brasil confiaria para mudar os planos do regime político. Deveria ter sido fiel ao imperador. Hoje vejo a república sem rumo, com ditaduras como as que eu exerci, e com tamanha truculência contra o povo a quem a república se diz ser igual, cidadãos. Dói-me contemplar tão belo o cruzeiro do sul e imaginar que Pedro não o verá nunca mais. Como foi que fizemos isso? Marchei para proclamar a república num paradoxo estranho por eu ser um homem convictamente monarquista. Nunca me preocupei com isso. O Brasil estava bem e nós fizemos esta anarquia. Não estamos conseguindo controlar nada, virei ditador, fechei o congresso, impus uma lei, renunciei, e agora Floriano esta lá, tentando ver o que pode ser feito. Criamos uma instabilidade política neste país e percebo agora que a presença do monarca seria de fundamental importância para que estivéssemos vivendo melhor.

Fico aqui com os olhos úmidos, imaginando o funeral pomposo de Pedro, digno de um grande imperador que reinou longamente num império tão profundamente próspero como este. Sempre reconheci que devia muito ao imperador e por ele nutri sempre muito respeito. Servi à pátria em lugares tantos, e estive lutando bravamente em diversas guerras. Ainda ouço nas longas noites de insônia os barulhos de bombas da Guerra do Paraguai. Não sei se aquelas medalhas tantas de condecorações várias são mesmo um reconhecimento do meu heroísmo. Como militar que sou tenho o maior orgulho de ostentá-las como troféus de bravura e atos de sobrevivência e salvamento do país. Agora, tão velho e cansado, observo a desordem que foi imposta ao povo brasileiro e me pergunto se tudo valeu a pena. Quantos dos meus voluntários da pátria eu não consegui trazer de volta. Ficaram seus corpos jogados no território inimigo e condenadas as almas de seus familiares a uma saudade eterna. Saudade essa que me invade por dentro do espírito e da consciência que sinto de Pedro II, velado em Paris, distante de sua terra natal, expulso por nós sem o menor escrúpulo.

A guerra, ah a guerra. A do Paraguai passou, a minha continua. Batalho comigo mesmo dia após dia nesta casa, que em nada me lembram os dias de glória e de ufanismo com que lutávamos. Matamos muito em nome de não sei o que. Não sei se o Paraguai precisava mesmo de tantos ataques. Investimos ferozmente como um leão em cima de sua presa. Estávamos bravios como cães de caça diante de animais indefesos. A guerra foi contra nós mesmos. Os condenados fomos nós. Estamos agora impassíveis diante de um Paraguai que queria o que nós quisemos, que sonhava nossos mesmos sonhos. E eles estão se reerguendo enquanto nós nos arruinamos, num triste momento em que vejo enterradas as esperanças de um futuro promissor e glorioso. O povo brasileiro, lutador por excelência há de fazer deste país uma nação de gigantes ante a essas tantas mudanças irreais.

Fui usado como o líder que os republicanos respeitavam. Fui eu a figura que eles precisavam para dar o golpe. E eu me deixei usar. Era uma decisão que eu não queria ter tomado, pois era amigo do homem que hoje partiu para seu descanso eterno. Enfim, de nada agora adiantam lamentações e lamúrias. O sol renasce todos os dias indiferente ao frio e às longas noites de almas que permanecem na escuridão. Permaneço aqui, nostálgico e apenas como um observador impotente que admira uma paisagem sem poder tocá-la. Com este telegrama da morte do imperador entendo ter-se de fato terminado um grande ciclo da história do Brasil. Com ele vai-se também uma esperança longínqua e utópica de uma possibilidade de ver esse país progredir.

Sento-me na cadeira de balanço e coloco meu corpo num ir e vir constante enquanto minha mente reproduz esse movimento internamente em uma alma ferida como a um escravo na mão de seu algoz. Nesse ir e vir volto à guerra do Paraguai, relembro os fatos dramáticos e às vezes inumeráveis que lutamos para sobreviver com o pouco que tínhamos. Volto também a cada uma de minhas condecorações que ostentei luxuosamente durante todo o meu tempo de militar e que agora, ficam ali num canto, sem a importância extrema que me tiveram. Fizemos uma revolução, irreversível agora. Isso é o que importa. Meu nome ficará na história e dele me orgulho. Mas permitam-me chorar a morte de um amigo. Apenas isso. A Pedro, a quem servi lealmente e que me confiou incontáveis trabalhos, a Pedro que gostaria que aqui estivesse para eu velar seu corpo e depositar em seu túmulo uma flor genuinamente brasileira. Sim, um homem também chora, e um homem durão como eu, comandante, forte, ditador, também chora. Sou humano acima de tudo e não consigo esconder meus dissabores dentro dessa casa que se tornou meu refúgio.

A mim, Manuel Deodoro da Fonseca resta a glória de ter sido o primeiro presidente da República brasileira. Em mim foram concretizados os sonhos dos inconfidentes, dos conjurados baianos e de tantos homens e mulheres que lutaram para ver o Brasil independente e instalada a república. No calor das emoções impossibilitado encontro-me de fazer uma autocrítica de minha conduta nesse processo. Só o tempo dirá, e o tempo eu já não tenho mais. Velho, cansado e doente, deixo para os outros a consolidação desse novo tempo. Mas espero. Espero que seja infinitamente melhor do que esta sendo agora, e que esses novos tempos tragam paz e prosperidade a todos os estados federados. Que cada um saiba dar o melhor de si. Eu continuo aqui, aguardando o momento final de encontrar-me com aquela contra a qual lutei, mas percebo-a já me cerceando, rodeando e aproximando-se lentamente. Irei feliz, apesar de tudo. Tenho uma vida limpa e minha consciência lúcida de meus erros e enganos, mas também de minha vontade e de minha coragem.

Fecho a janela e guardo o telegrama fatal. Deito-me e tento rezar para que meu amigo esteja na glória do céu e que me perdoe sinceramente por não ter tomado a atitude que convinha às minhas ideias e ter proporcionado um novo rumo para o país. Mas quem não erra? Convivo com os meus e não os nego. Convivo também com minha serenidade de que se errei, foi tentando acertar. Num último momento antes do sono olho na parede e vejo o crucificado. Dores profundas em um inocente. E sempre que o observo ali na parede, me diz tudo o que eu preciso ouvir. Aí posso dormir o sono dos anjos. Em paz, como a paz que sonho para o meu Brasil. A Ele eu peço para realizar o que minhas mãos enrugadas e trêmulas não mais o podem fazer. E durmo... tranquilo, descansado, sereno...

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 23/07/2011
Código do texto: T3113391
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