Sexta-feira, biblioteca
Hoje, seguramente, é sexta-feira. Sei disso porque encontrei meu vizinho na frente de casa. É um homem com os seus sessenta anos e que mora sozinho. Estava parado e fumava. Cumprimentei-o e ele quis puxar conversa. Perguntou-me sobre o frio do sul. E disse que estava ali esperando a chegada do seu filho. “Nós vamos a um boteco”, explicou. E não demorou até que seu filho viesse e os dois saíssem para um encontro amigável, que contaria ainda com a presença da sua nora, e talvez mais alguém. É sexta-feira à noite, e as pessoas aproveitam para se divertir e fazer coisas assim. É um programa agradável, e muito mais interessante do que aquele que escolhi para hoje. Não tenho programa nenhum, e então, para não passar uma noite inteira em casa, vou até a Biblioteca Demonstrativa.
Percebo que não sou o único. Há pelo menos dez pessoas que também vieram à Biblioteca, mas não para emprestar algum livro que pudesse ser lido em casa. Estão lá para estudar. Estudam porque querem passar em algum concurso público ou vestibular. E então passam a noite de sexta-feira debruçados sobre livros técnicos, teóricos e difíceis. Talvez algum de Direito Civil. Ou um de Administração. Sempre se estudam coisas de Administração. Vi um rapaz que estudava a gramática do português. Ah, que ótima maneira de passar a sexta-feira! Trabalha-se o dia inteiro, a semana inteira, e ao final se descansa estudando regrinhas gramaticais da nossa simples língua portuguesa.
Estão concentrados em suas mesas, todas devidamente cercadas para que ninguém ouse perturbar. É um silêncio de igreja, e qualquer um que fique algum tempo por lá acaba dominado por ele. Eu mesmo estive a ponto de fuzilar um jovem que começou a esfregar um tênis no outro enquanto estudava. E, como não havia outra coisa a fazer, também me concentrei na leitura de alguma coisa qualquer. Não estou estudando para concurso público. Tenho apenas algumas ideias, projetos, trabalhos. E me dedico a eles numa sexta à noite.
É uma visão bonita, toda aquela fileira de mesas, cadeiras, gente de cabeça abaixada, proibidas de fazer barulho, de fazer um lanche, de se divertir de verdade. É tão bonita que se torna assustadoramente triste. O que está ali são sonhos. Alguns mais firmes, outros nascidos da necessidade, mas todos sonhos, e legítimos. Haverá aqueles que conseguirão, e que talvez se lembrem com carinho das sextas-feiras que desperdiçaram em cima de livros. Foram recompensados, afinal. Ah, mas como são poucos, esses! Quantos deles não conseguirão passar nesse concurso, e nem no próximo, e nem no seguinte, e ainda terão que gastar uma boa parte da vida tentando, se esforçando e se consumindo?
São pensamentos melancólicos, e não convém insistir neles numa noite como hoje. Acreditem, amados estudantes, está uma bela noite aqui fora. Venham para cá por um instante! Celebremos um pouco a noite, o céu, a lua, as estrelas, e tudo aquilo que só prestaremos atenção no dia que formos bem sucedidos. Venham ter uma pequena amostra do paraíso que se esconde depois da nossa merecida aprovação!
Por favor, ao menos hoje, por um pouco de tempo, saiam desta biblioteca!