Infância roubada

Lembro-me com tanto carinho da minha infância!!!

Fico a pensar se meus filhos terão o mesmo sentimento quando

chegarem à maturidade. Nessa correria da vida, preocupamo-nos

tanto em trabalhar para suprir as necessidades dos nossos pequenos,

elegendo fatores essenciais em suas vidas, que nos esquecemos de

perguntar a opinião deles sobre o assunto.

Trocamos jantares em família por lanches no sofá; conversas

importantes por noticiários de TV; gargalhadas escachadas por

sorrisos apressados. Estamos sempre completando as frases dos nossos filhos, tentando agilizar o tempo que perdemos para escutá-los...

Adiamos o momento de ensiná-los a andar de bicicleta para sobrar tempo para fazer a unha, navegar na internet ou acompanhar os enredos previsíveis das novelas das oito.

Estamos sempre endividados por gastarmos além do necessário,

e infelizes por não conquistarmos o supérfluo.

Chegamos ao cúmulo do isolamento evitando, muitas vezes,

sair de casa e alegando indisposição para cumprimentar o vizinho.

Ninguém mais olha pra Lua, contempla o pôr-do-sol ou admira

o frescor da chuva. Às sete horas da noite , nenhuma alma viva circula

pela rua. O silêncio amedronta. A magia da noite cedeu lugar a

tragédia da escuridão. O lazer do fim de semana se limita a passeios

curtos e de vidros fechados. O silêncio é quebrado, no máximo, pelo

som estéril durante o trajeto.

O drive in das lanchonetes são as primeiras opções dos pais da

atualidade. Todos comem apertados e desajeitados dentro do carro,

ao invés de optarem por se empanturrar de pipoca com guaraná na

pracinha da cidade, ou, quem sabe, entupirem-se de picolés, contando

piadas na sorveteria da esquina.

Lembro de tantas coisas hilárias na minha infância. Dá um aperto no peito só de pensar que o computador e o vídeo game serão as únicas lembranças dos meus filhos daqui a alguns anos. Jamais saberão o que significa jogar queima até altas horas da noite (juntando a pirralhada do quarteirão), participar de campeonatos de Trilha, Ludo, Stop e Banco Imobiliário, sentados na calçada em frente à casa mais iluminada do quarteirão.

Jamais sentirão a emoção de torcer para ser escolhido no jogo de pêra-uva-maçã, quando o garoto mais cobiçado da turma, de olhos

vendados, estiver prestes a escolher a felizarda para receber a “salada

mista”. Isso sem contar os ensaios hilários das quadrilhas que abrilhantavam as animadas festas juninas do quarteirão. E as quermesses??? Nossa! E os correios elegantes??? Os comícios eram

verdadeiros shows! Esperávamos com ansiedade por eles!

Chegávamos sozinhas, saíamos apaixonadas!

Tinha moço que pagava para molecada “guardar lugar” no espaço mais escurinho atrás do palanque, com a pretensão de encontrar uma bela moça para namorar. Muitas vezes, o prejuízo era certo, pois, além de não arrumar ninguém para desfrutar da sua companhia naquele lugarzinho chinfrim , era obrigado a desembolsar uma “grana” razoável para o pivete que garantiu aquele azarento “ninho de dissabor”.

Lembro-me de tanta coisa boa na minha infância... de elaborar

e de responder centenas de enquetes, de perder o sono por amores

platônicos e impossíveis, de encontrar o ninho do coelhinho (lotado

de chocolates na manhã de Páscoa), de acampar à noite em barracas

feitas de lonas furadas no fundo do quintal, de pernoitar na casa das

colegas e de assaltar a geladeira na calada da noite, de fazer tortas de frango na surdina da madrugada, de furar a lata de leite condensado e acabar com ela embaixo da cama, de escrever bobagens nas agendas do colégio, de fazer fogueira com gravetos e chá de hortelã nas latas de Nescau, de encher a piscina de 1000 litros com sabão em pó para ver quem conseguia ficar mais tempo em pé, de descer os morros das Nações Unidas sentada em pedaços de papelão, de passar muitas tardes nos parques de diversões da cidade andando no bicho da seda, nos tobogãs, no cinemas 180º , de escalar a goiabeira e de comer fruta fresquinha do pé, tirando os bigatinhos com a unha (parece nojento, mas todo mundo fazia), de se equilibrar nos trilhos do trem esperando o apito da locomotiva soar e correr até a poeira abaixar, de passar debaixo da catraca do ônibus, enganando o

motorista com minha idade, de comprar verduras na vendinha da

esquina levando a caderneta para acertar as contas no final do mês,

de implicar com o coitado do peixeiro que acordava todo mundo na

manhã de quinta-feira, gritando: “Peixeeeeiroooo... fresca sardinha!!!!”.

Nossa!!!! Que tempinho bom! Tempo em que eu e meu irmão

dividíamos o minúsculo espaço do fusquinha azul do meu pai

apelidado como “forninho”. Chegavamos suados na cidade de

Jataizinho, no interior do Paraná!

Não tínhamos luxo nenhum, mas como éramos felizes!

Alegrávamo-nos com pouco. Depressão, naquela época, não

passava de grandes buracos na estrada. O único remédio que

tomávamos para dormir, por horas a fio, era um copo duplo de garapa

ao final da tarde.

Nas festas de finais de ano, ninguém comia antes da meia - noite e nem dormia antes do amanhecer. Passávamos dias e dias preparando as decorações. Tudo tão diferente das festas de hoje, cujo lema é: “Quanto menos trabalho, melhor”, ou seja, um churrasquinho

que acaba antes das dez da noite, uma comidinha congelada pra

não dar muito trabalho. São praticidades ganhando espaço, e a magia

perdendo o encanto.

Hoje, nossos filhos nem amigos tem. Cada um vive em suas próprias “cascas”. Na verdade, não vivem; apenas esperam, apáticos,

a chegada da maturidade. Não se divertem em escadas rolantes nem

se encantam com autoramas de pistas triplicadas. Seus amigos são

virtuais e seus ídolos, tediosos! Isso sem falar nas músicas

ensurdecedoras, nas roupas rasgadas, nos cabelos criativamente

ridículos. Tem adolescentes que são barrados, constantemente, na entrada dos bancos. Ficam presos nas portas giratórias, devido à quantidade de metal que têm espalhados pelo corpo (muitas vezes em lugares não tão fáceis de retirar).

A filha de uma amiga cravou dezenas de piercings de argolinhas

no “traseiro”, formando o nome do namorado: “Guilherme”. Minha

amiga estava desconsolada: “Se ao menos tivesse escrito Gui, mas

Gui-lher-me???” Bom, pelo menos não fez questão do sobrenome! Já

era um ponto a favor.

É... quantas infâncias foram roubadas em função da tão famosa

Modernidade ! Realmente, não tenho certeza se meus filhos terão

saudades de sua infância, nem tão pouco se terão um repertório

louvável para contar aos meus netos; porém, nada posso fazer, pois

meu tempo já passou, e o deles está no fim.

Infelizmente, eu estava muito ocupada para pensar nessas

coisas. Hoje, esgotaram-se todas as possibilidades. Restam apenas

lembranças e saudades do tempo em que meus filhos ainda eram

crianças...