O CASTIGO

Loira, cabelo cacheado, magrinha, debruçada na janela do quarto pensava: Por que esse castigo tão triste? Porque deveria ficar sem sua bicicleta por tempo tão longo como uma longa semana?

Se alguém tivesse parado para interpretar a travessura que levara essa menina a receber tão penoso castigo (Imagina! Ficar sem sua bicicleta por uma semana!) talvez compreendesse sua alma pequenina.

Tinha perdido a mãe. Ela se fora embora deixando tudo para enfrentar a vida que escolhera ao lado de seu novo amor. Poderia ser cruel, se não fosse patético: pensando encontrar a felicidade, deixara valiosos bens para trás, como essa menina da bicicleta. Mas não é o relato dessa senhora que deve estar nesta história, mas um pequeno interlúdio na vida dessa criança tão ingênua e despreparada para a vida.

Com a menina, ficara também o sofrimento, a incompreensão, a saudade, a confusão, um imenso espanto naquele coraçãozinho de 12 anos! Ficara morando com tios.

Depois da partida da mãe, talvez como uma compensação, o pai lhe dera a tão sonhada e esperada bicicleta. Tinha sido uma alegria imensa!

Nem dormia direito de tanto pensar nela!

Conseguiu aprender a se equilibrar num terreno ao lado da casa, cheio de pés de mandioca, que ela ia atropelando, se arranhando, caindo e levantando. Tinha ficado com muitas manchas roxas pelas pernas e braços, mas não desistira. Aprendera sozinha finalmente a andar.

Durante o aprendizado, todas as vezes que via que ia cair, sempre dava um jeito para segurar a magrela, para que ela não se quebrasse, nem se arranhasse.

Ela podia ficar machucada, a bicicleta, não.

E esse castigo agora?!

Afinal, (pensava) o que ela tinha feito de tão errado para justificar a queixa do tio ao seu pai? Por que naquela carta, onde esperava notícias boas, tinha chegado a ordem de receber um castigo tão cruel?

Viu o carteiro chegar e entregar ao tio uma carta. Pela letra, viu que era do seu pai.

- Conta, tio. O que o papai ’tá dizendo? Ele vem logo?

- Não, ele não vem logo. Ele está dizendo que você não poderá pegar na bicicleta por uma semana.

- Mas, por quê? O que eu fiz?

- Você saiu sem dizer para onde ia. Escrevi para seu pai que você desobedeceu saindo sem avisar mais uma vez. Não viu o tanto que sua tia chorou?

Nada respondeu. Saiu de cabeça baixa e foi para o quarto. Ainda olhou pela janela através das folhas do cajueiro e viu sua bicicleta encostada no rancho.

- Ainda bem que não a levaram embora! Pensou.

Na sua cabecinha, nada tinha feito de errado. Acontecera o mesmo de sempre: aparecia aquele doloroso sentimento de saudade da mãe, da sua casa, dos brinquedos e dos amiguinhos que tinha deixado para trás quando fora morar com a tia; sentia a angústia doer aguda no seu peito, aquele sentimento sem nome e sem compreensão; parecia que as paredes de seu quarto se moviam, deixando o espaço ir ficando cada vez menor.

Quando isso tudo acontecia, aquele desespero de liberdade avolumava dentro de seu coração. Seu impulso era sair dali, deixar para trás aquele cenário novo e tão difícil de ser aceito, buscar uma estrada que a levasse para perto da mãe.

Era fugir da nova vida?

Era buscar seu antigo ninho?

Era fugir de si mesmo?

Não se pode dizer. Só tinha vontade de correr, correr muito até encontrar um espaço vazio, uma imensidão a perder de vista pela frente! Um lugar onde nada visse, de nada se lembrasse...

Tinha sido somente isso o que acontecera. Por que ninguém percebia?

Naquele dia ao chegar da escola, tinha feito as lições que a professora lhe passara.

Arrumou seu quarto e, guardando seus cadernos e livros na gaveta da escrivaninha, encontrou aquela foto antiga. Na frente da sua antiga casa, sentados nos degraus da varanda, seu pai, sua mãe e as duas meninas: ela, pequenina, magrela, de vestido xadrez, fita no cabelo loiro, sorrindo; sua irmã séria, já mocinha, vaidosa! Na foto, do lado da casa, dava para ver o formoso caramanchão de madressilvas, onde por vezes montava sua casinha de boneca.

Lembrou-se do caramanchão de madressilvas, onde também se escondia das amiguinhas nas brincadeiras de esconde-esconde. O cheiro daquelas flores amarelinhas ainda se fazia sentir na memória!

Ficou olhando longamente para aquelas figuras estáticas.

Depois, seu olhar se alongou pela janela, para lembranças já não mais paradas, mas vivas, dinâmicas, movimentando-se em sua memória, fazendo reacender aquela absurda dor da ausência, trazendo à tona palavras antigas de carinho, pequenos gestos.

Pequenas cenas de antes voltavam aos seus olhos e mexiam com seu coração: a laranjeira onde fazia sua casinha de bonecas encima de uma tábua apoiada na forquilha de dois galhos cheios de espinhos; ninguém conseguia subir até ela! Escondia-se lá para fugir do chinelo da mamãe.

As galinhas “legorn”, tão branquinhas, tratadas com ração misturada em água, que era sua tarefa matinal. Uma das galinhas era só sua, a mamãe lhe dera porque era diferente das outras: era uma galinha anã de pernas tortas.

Por onde andaria sua professora Dª Vitalina, que ela chamava de Dª Vitala e que lhe tinha ensinado as primeiras letras?

E os cheiros deliciosamente gravados na memória, o bolo assando no forno, o cheiro do Óleo de Peroba que passava nos móveis da sala, o perfume da mãe, aquele cheiro impregnado em suas roupas, em sua vida. (Como se chamava mesmo? Ah! “Maderas de Oriente”). Ela nunca usara outro.

Era simplesmente insuportável aquela dor do “nunca mais!” Queria gritar, alucinadamente chorar a sua dor primeira, aquela dor desconhecida e tão grande em seu pequenino coração! Como fazer para arrancá-la dali?

Não agüentou mais... Pulou a janela do quarto e por entre os galhos do cajueiro, desceu no quintal, correu para o rancho e pegando sua companheira, a bicicleta Phillips pretinha, saiu em desabalada carreira portão afora...

Não ia devagar. Pedalava sem nem sentir as rodas trepidando no calçamento “pé de moleque” da avenida. Corria, corria muito!

Ainda pensou ouvir alguém na rua chamando seu nome. Nem parou, nem olhou pra trás. Conhecia o fim da avenida. Ia dar em outra e depois naquela outra avenida larga que emendava, lá longe, com a estrada que saía da cidade em direção nenhures...

Não importava para onde ela a levaria, somente sabia que tinha que correr, correr muito, quem sabe ainda encontraria aquele trem que tinha levado sua vida antiga para o nunca mais...

Chegou à estrada, sentia cansaço, pedalava um pouco mais devagar, a subida tinha sido difícil, mas pedalava. Não podia parar, não naquela hora, não naquele dia, não com aquela dor na alma! Seguiu pela estrada, no acostamento contramão.

Os caminhões passavam em alta velocidade, os carros também. Alguns buzinavam longamente, talvez para alertá-la de algum perigo. Que perigo? Não saberia dizer. Na sua inocência, não via perigo algum.

Desviou de uma carroça de lenha que seguia também pelo acostamento e ainda ouviu o carroceiro chamá-la: arre menina, aonde vai? Anda devagar...

Não, não. Correr, correr, tinha que correr. Tinha que alcançar não sabia o quê para livrá-la daquela saudade imensa! O caminho só era entrevisto, porque as lágrimas enchiam seus olhos e corriam soltas, desaparecendo no vento que batia em seu rosto e que fazia seus cachos loiros se emaranharem na cabecinha.

O cansaço foi vencendo seu desespero, foi diminuindo as pedaladas quase sem perceber até que parou cansada, quase sem fôlego ao lado de uma cerca de arame farpado que separava um campo imenso da estrada.

Encostou a bicicleta num mourão e varando a cerca, entrou naquele pasto a perder de vista. Viu lá adiante um pé de gabiroba e, com muita sede, foi colher as frutas para chupar. Olhava para o lado da estrada a vigiar sua bicicleta, quando ouviu alguém lhe falar:

- O que faz aqui, menina? Volta pra casa, seu lugar não é aqui.

- Quem é a senhora? De onde veio? Não vi a senhora chegar.

- Não importa, você não me conhece. Ouça o que lhe digo. Volta pra casa. Porque chora tanto?

- Minha mãe foi embora e eu a quero de volta. Tenho muita saudade.

- Imagino o quanto! Mas olha, quando sentir saudade, não saia correndo, fica quieta, deita e chora, mas lá no seu quarto. Acabará dormindo e aí a saudade passa. Aqui é muito perigoso. Veja, a tarde já está no fim. Já, já será noite. Não tem medo?

- Tenho não. Nem pensei nisso. ‘Tá bem. Já vou. Tiau. A senhora vai ficar ai?

- Mais um bocadinho só. Depois me vou...

Saiu acenando e caminhando devagar; ainda virou a cabeça para ver se a velhinha tinha visto seu aceno. Lá atrás não havia ninguém... Ficou intrigada, mas não sentiu medo. Ainda não sabia o que era isso. Varou a cerca, pegou a bicicleta e voltou para a cidade.

Perto de um posto, achou um caco de vidro e pensou:

- Vou me arranhar, vai inflamar e eu vou morrer. Assim, não vou sentir mais essa dor.

Quando chegou a casa, encontrou a tia chorando e se lamentando que não conseguisse entender porque ela fazia aquilo. Aquilo o que? Pensou. Se fosse pelos arranhões, não se preocupasse; explicou dizendo que um gato a havia arranhado. Quis contar que encontrara a tal velhinha, mas não teve chance.

Foi para o quarto, não quis jantar. Deitou-se como a velhinha ensinara e chorou até adormecer...

Muito tempo depois contou para sua avó o caso da velhinha no pasto e a velha senhora lhe disse que os anjos que protegiam as crianças às vezes apareciam como se fosse gente viva, um homem velho, uma moça bonita, uma velhinha. Aí entendeu. Passou a acreditar em anjo.

No dia seguinte e nos outros, nada aconteceu. Seus arranhões não inflamaram, ela não morreu e afinal, a vida continuou.

E continuou até o dia em que chegou a carta do pai:

- Conta, tio. O que o papai ‘tá dizendo? Ele vem logo?

Não, ele não viria logo, tinha sido a resposta. E tinha que ficar sem sua bicicleta por uma longa semana, de castigo.

Mas por quê?

Não lhe bastava o castigo da saudade?

... E isso aconteceu de verdade!

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 22/07/2011
Reeditado em 13/09/2011
Código do texto: T3111550