Eneida ou Sarita Montiel  
 
                                   “A arte é um esforço para criar, além do                          do mundo real, um mundo mais humano".André                                                                                             Maurois                                                                 
 
                               Não sei bem se meus amigos vão se interessar  pelo que vou contar hoje.
                               Acredito que aqueles que ultrapassaram a zona de sombra, rumo à velhice, vão, sem dúvida, botar os olhos na estória,  sentindo um certo arrepio na alma.
                               Essa mania de ficar lendo, dá nisso. Estou relendo André Maurois.  Tornou-se ele um grande amigo meu, através da leitura, evidentemente. E nessa releitura passo para os amigos  o que ele nos conta a respeito da velhice.  Acabamos tomando conhecimento de coisas do “arco da velha”.  Vejam só essas duas passagens verdadeiras:   um  viajante na antiga África conheceu um   velho chefe de tribo que lhe suplicava: “ Dá-me, por favor, uma tintura para os cabelos. Se notarem que encaneço, vão me matar”.  Pior acontecia com certas populações dos mares do Sul, a  “boa” família fazia subir  os velhos no alto de um coqueiro, depois sacudia a árvore. Se o pai fosse capaz de se agarrar, tinha o direito de viver. No entanto, se caía, o caso estava julgado e a sentença executada. 
                               Quando tomo conhecimento desses “absurdos” que a história nos relata, me tranquilizo um pouco com a nossa época cheia de problemas e loucuras também.
                               O leitor já deve estar percebendo que estou novamente com minhas lembranças. Começo a desconfiar que  fico às vezes meio Proustiano, com tantas recordações.
                               É que, muito antigamente, na idade precisamente de 20 anos, costumava colecionar artigos desse grande escritor que foi André Maurois,  da  Academia Francesa de letras.   O jornal “O Globo” durante alguns anos publicava seus artigos,     cheios de sabedoria.
                               Lamento ter perdido todas essas publicações, cujos temas eram variadíssimos. Essas publicações foram depois, pacientemente, com perfeição,  batidas à máquina de escrever por uma linda moça, cuja história passo a narrar. Lembrança puxa lembrança.
                               Penso que o leitor  gostará de saber o que aconteceu comigo naquela época de minhas leituras do amigo Maurois. Como disse, estava eu com apenas 20 anos. Em um mês de julho, passava férias em Penedo, distrito da cidade de Rezende, no Estado do Rio de Janeiro. Penedo fica no pé da serra de Itatiaia e era uma colônia de finlandeses, os inventores da sauna. Aos sábados, os jovens frequentavam um pequeno Clube de danças. Foi lá que aprendi a dançar polcas e mazurcas. Começava a estudar   história antiga,  com  poucas leituras de alguns clássicos, mas especialista em André Maurois.
                               Muitas moças apareciam no Clube e suplicavam para aprender as danças finlandesas. Num daqueles sábados, já muito tarimbado nos passos das  polcas e mazurkas, surge uma linda moça, praticamente sósia da artista de cinema Sarita Montiel, protagonista do filme "La violetera",   me pedindo para aprender  a dançar.  – Como é o seu nome?  - Eneida. Surpreso, indago, na mesma hora: “  Eneida de Virgílio?   A Eneida, bem mais velha, com a idade de 30 anos, praticamente se apaixonou por mim, encantada que ficou em saber que eu conhecia o poeta romano Virgílio e a origem do seu nome. Um detalhe incendeia uma paixão.                                 
                               Essas releituras são saborosas e, na idade madura, aproveitamos muito mais as mensagens. Com relação à velhice, que foi a minha primeira lembrança,  Maurois fala das mortes profissionais. O padre Bouhours, que era gramático, morreu com essa frase:   “ je vai ou je vas mourir, um e outro se diz”. O filósofo Halle, que era médico, tomou seu próprio pulso até a suprema pulsação. Suas últimas palavras: “meu amigo, a artéria cessa de bater”. No momento da morte do matemático Lagny, um dos seus assistentes se curvou até ele, perguntando: “Qual é o quadrado de doze? – cento e quarenta e quatro, respondeu Lagny. E morreu, em seguida.
                               Maurois encerra seus apontamentos sobre a morte com esse lindo pensamento: “ É um feliz destino envelhecer e morrer no meio daqueles  com os quais se cresceu e combateu. Enfim, sede modestos e audazes. Amar, pensar, trabalhar, comandar todas essas ações são difíceis e não chegareis no curso de vossa existência terrestre, a fazer nenhuma delas tão perfeitamente quanto vossa adolescência o sonhara. Mas tão árduas quanto possam parecer não são entretanto impossíveis. Antes de vós as gerações inumeráveis dos homens as realizaram, e, bem    ou  mal, atravessaram, entre dois desertos de sombra, a estreita luz da vida. Que temeis? O papel é curto e o público mortal como vós mesmos”.
                               O leitor deve estar se perguntando e até clamando não por morte, mas pela ventura da vida:  “ e a Eneida?”  Bem, com a idade de 20 anos, imaturo, ia me apaixonando por muitas Eneidas da vida. O amor não prosseguiu, mas ficou uma compensação, a admiração pela moça permaneceu. E para que eu não fique com remorso pela minha inconstância juvenil, talvez caiba aqui o pensamento de  Byron,  citado pelo meu amigo Maurois.  Disse ele: “É mais fácil morrer pela mulher que se ama do que viver com ela”.