FRIO INTENSO - CRÔNICAS HISTÓRICAS
É sem júbilo que assino este papel. Parece que condeno-me a mim mesmo e à minha família ao exílio criminoso e traidor, sem nenhuma resistência. Foram as letras mais difícieis de minha vida. Cada uma delas dói-me como um punhal cravado no peito tal uma imagem da Virgem das Dores. Sinto dores na alma, chagada como N. Sr. Jesus Cristo o foi no corpo todo. Parece que estou aqui reconhecendo minha incapacidade e a impotência de toda minha família para continuar o trabalho de gerações. Definitivamente não queria ter assinado este documento. Falta-me no entanto forças para continuar. Sobram motivações para ficar, mas também me sobram inimigos bem arquitetados cujos quais sinto-me sem forças para lutar. Observo a tristeza profunda no rosto de todos aqui presentes. A pena que desenha essas palavras tem uma tonelada. Minhas velhas e trêmulas mãos titubeiam insistentemente neste papel a desenhar a tragédia que a partir de agora assola a mim, à minha família e à nação brasileira. É uma dor que espalha por toda essa terra, que ora clama por uma liberdade maior e uma autonomia em que nós não somos mais bem vindos.
Olhando essa janela e sentindo esse calor, sinto um frio intenso e paradoxal ao me imaginar longe da terra em que nasci, que criei meus filhos e tomei decisões tão importantes para tantas pessoas. Sinto antecipadamente o frio europeu que enfrentarei a partir de hoje. Será um frio intenso, dolorido, profundo, n’alma machucada e expulsa dessas brisas quentes, dessas montanhas douradas, dessas praias paradisíacas e inigualáveis que só existem nesta nação. Deus me conceda forças e auxilie o coração amargurado de um homem expulso e injustiçado, machucado em sua dignidade e em sua vida honesta e dedicada a esse país. Assusta-me o medo que possuem de um velho, de saúde fragilizada como eu.
Meus olhos umedecem o papel e traz à minha mente a saudade de meu pai, de quem praticamente não tenho muitas lembranças. Ele se foi de mim, embora para longe, tão cedo e justamente quando dele eu mais precisava. Ao terminar com isso, caminho em direção à vista do quarto. Parece que a vejo ainda lá. A coroa que meu pai deixou de presente em cima da cama, juntamente com aquela trágica carta de despedida. Compreendo perfeitamente suas atitudes, mas é difícil não ter tido meu pai por perto. Senti muito a sua falta na infância, mas agora gostaria que ele estivesse aqui do meu lado para me amparar. Ah papai, que saudade, que nostalgia de não tê-lo tido do meu lado! A coroa que o senhor deixou esta bem guardada comigo. É meu maior tesouro. Apesar de entender claramente a necessidade de sua partida para Portugal, não posso deixar de sentir sua falta e seu apoio nesse momento. Se estivesses aqui... A carta esta comigo guardada como uma última lembrança de meu jovem pai, que nunca mais pude reencontrar. Deixaste-me Rafael como presente. Ele foi o senhor aqui comigo. Com ele aprendi a ser um verdadeiro homem. Negro, livre, serviu-me toda a vida. Partiu hoje para a eternidade e é esta mais uma dor que carrego embora do Brasil comigo. Rafael ensinou-me a igualdade entre as pessoas e foi o homem que mostrou-me o quanto somos iguais e que diferenças econômicas são insignificantes e que diferenças de cor de pele simplesmente não existem. Foi por ele que lutei pelo fim da escravidão. Meu primeiro passo foi libertar os quarenta escravos que ganhei quando atingi minha maioridade e tormei-me de fato imperador do Brasil. Eram quarenta sorrisos que nunca mais saíram nem sairão de minha mente. Beijaram-me a mão, agradeceram-me. Não faltou também quem ficasse inquieto com a atitude de um menino de quatorze anos que iria governar um país cheio de escravos. Muitos vão me odiar por não tê-la feito, mas a história me julgará. Vou terminando com ela aos poucos, para evitar conflitos que aconteceram em outros países. Gostaria de velar Rafael, meu pai por toda a vida, meu colo aconchegante e meu amparo. Dizem que foi o desgosto de me ver expulso desta terra pela qual nutro um amor profundo, intenso e extenso tal como o mar e o céu infinito. Não resistiu à emoção e faleceu há pouco.
Contemplando o céu dessa cidade, convivo com o paradoxo do amor e ódio dentro de mim. Posso sentir como se ainda hoje fosse o dia da minha apresentação pública. Eu ainda tão criança, com uma missão a assumir. Os tiros de saudação da artilharia me traumatizaram. Fiquei tão assustado que ainda hoje, ou até hoje não gosto muito de aglomerações. Fui um imperador discreto, como discretamente saio do Brasil para permanecer ainda na vida desta nação. Meus diários, ainda mais intensamente agora, conterão outrais mais páginas destinadas a esta nação e a este povo amado. Agora o ódio inexplicável. Não quero resistir. Dediquei minha vida inteira, desde minha infância e recebo agora o prêmio do exílio. Não fiz mal a esta gente, pouca na verdade, porque a república é a revolução de alguns. Alguns que querem decidir os destinos do Brasil e tem medo do povo que não me permitiiria partir. Por isso assino esse documento e parto de madrugada, como um criminoso fugindo da prisão.
De nada adianta mais o saudosismo e revisão de vida. Mas observando esse silêncio da noite carioca, de nada adianta saber falar alemão e chinês, se gosto mesmo é de estar aqui com minha gente, falando português e tupi-guarani. Dediquei minha infância predestinada a grandes feitos e a grandes realizações, estudando o dia todo e preparando-me para comandar a mais próspera nação do planeta. Rafael que me socorria, deixava eu me esconder para não ter que ficar estudando horas a fio. Saudade que já sinto dele...
Bom, já esta na hora de partir. As mulheres choram, os homens se emocionam. Eu permaneço de pé, firme como uma rocha, mas dilacerado por dentro. É madrugada e tenho que deixar meu país, com uma artilharia de plantão do lado de fora. Vieram apenas os subalternos. Meus oponentes republicanos, onde estão? Nem tiveram coragem de encarar o imperador face a face. E eu aqui, sereno, parto para evitar um banho de sangue (1) , uma revolta, a morte de inocentes. No documento, minhas últimas letras no Brasil deixo apenas que cedo ao império das circunstâncias, e ressalto meu amor nestes cinquenta anos que governei com honestidade a nação. Assino, serenamente, Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga, ou Dom Pedro II, que vai sem querer e leva dentro de si todo um povo que me ama.
Reunindo nossos pertences caminhamos a passos largos, diante da artilharia que por mim demonstra grande veneração, tal qual a última vez, em 1888 que aqui voltei do meu tratamento de saúde. Honestamente, nunca imaginaria que pudessem querer me arrancar do poder e da minha própria nação de forma tão inescrupulosa e indigna. Vou-me agora, uma hora da madrugada, sentindo pela última vez o suave perfume da brisa das praias do Rio de Janeiro. Esse frescor levo comigo, abraçado à minha Isabel, que tentou em vão resistir ao golpe da República, e levo também o sorriso dos brasileiros que amahã amanhecerão sob um novo comando, que honestamente, espero que venha melhorar a vida de todos. Que eles façam o que eu não pude, que eles realizem os sonhos de tantos homens e mulheres trabalhadores, esse grande povo que deixo apenas em corpo. De lá, da Europa e da minha prisão da alma, estarei presente em meus pensamentos em cada canto desse Brasil. A história me será justa, e um dia eu voltarei.(2) Aqui é meu lugar.
Enquanto o navio se afasta do Rio, fecho os olhos para contemplar com a alma a terra de minha infância. Fecho os olhos do corpo para abrir os olhos do espírito, com os quais continuarei a ver esta terra e esta gente. Que Deus me conceda vida longa ainda, para um dia pisar este chão santo e abençoado. Abro os olhos e já não vejo mais nada além do breu da noite fatídica. Sigo meu caminho, sempre imperador, sempre brasileiro, sempre amante desta terra. Para sempre...
NOTAS:
1. Na verdade, um grupo da marinha dava vivas ao imperador. Os soldados haviam dito que eram republicanos exaltados querendo ferir a família imperial. Ele partiu, para evitar um mal maior.
2. Voltou mesmo. Apenas os restos mortais, que foram trazidos em 1920 e esta sepultado na Catedral de Petrópolis