Ao pó, a voz da noite respondia.

Ontem tive um papo legal com meu tio Geraldo. Ele passa uma temporada na minha casa e depois volta pra Campinas, e essa rotina se dá por conta de sua condição: teve um AVC (...derrame cerebral), perdeu muito da sua capacidade motora mas ainda come sem ajuda! ficou cego. Seus olhos azuis ainda são como duas pedras lapidadas. Eu estava escrevendo e ouvindo Caetano e resolvi dividir o que fazia com ele. Você conhece a história de José do Egito, tio? E ele começou a contar a história pra mim. Seus olhos se mexiam de modo violento, rápido e pareciam sem direção procurando pelo fio da narrativa no escuro da memória e, não sem dificuldade, contou o que pode. O prazer dele em contar me emocionou e quando terminou, com um arremate moral, rimos juntos. O resto da noite meu sono se perdeu e no escuro do meu quarto parecia que era outro o eu que procurava o caminho da narrativa. Prá onde vai tudo isso? Eu perguntava pra mim...

As histórias que ainda estão por aí, a memória de cada um, o que resiste ao tempo e dura e segue entre gerações, prá onde? Prá onde vai tudo isso?

Ao pó, a voz da noite respondia.

(...)

Agora são 15h e dez minutos, A Arismar acaba de sair levando seu companheiro, o Tio Geraldo pra Campinas. Presença etérea, falta marcante. Com toda a sua dificuldade ele entrou no carro, coloquei-lhe o cinto de segurança e ela se sentou ao lado dele, o vidro escuro permitia a silhueta e deu pra ver que chorava. Talvez de satisfação por saber que estava deixando em Franca mais que parentes, irmã, cunhado, sobrinhos mas pessoas que o amam. Chorava talvez já de saudade, talvez. Dele aprendemos todos os dias que mal dizer a sorte não muda o destino, o fado. Que aceitar o imutável é sabedoria e, também, que se movimentar faz bem ao corpo que tende à paralisia. Porque muitas vezes é só o que se nos apresenta: a morbidez das horas e o escuro da cegueira. E aquela sensação de impotência frente o grande Adamastor nos afronta e parece dizer: desista. Tio Geraldo viveu intensamente seus dias de saúde e, não se enganem, ainda os vive.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 21/07/2011
Reeditado em 19/07/2018
Código do texto: T3109833
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