Nem tudo que reluz é ouro!
Hoje, assistindo ao filme “O diabo veste Prada”, tive quase a
certeza de que o diretor do enredo conheceu, intimamente, uma
pessoa que eu e muita gente também conhece!
Na verdade, não só conhece, mas obedece, ou, talvez, obedecia,
já que, hoje em dia, duvido que até mesmo o cachorro da casa dê
ouvidos aos seus ataques de estrelismo.
Nesse filme, a atriz Meryl Streep interpreta uma tirana editora
de moda em Nova York, que faz da vida dos seus funcionários um
verdadeiro inferno. Comem o pão que ela mesma amassou ( já que é
o próprio diabo, na versão feminina).
Essa madame que conheço é o clone da personagem do filme.
Talvez tenha sido a inspiração real do autor, que a conheceu numa
das suas visitas ao Brasil. Vai saber...
Para resumir sua atuação, ou melhor, seu estrelato na vida real,
a mulher sentia-se a própria Rainha do Nilo. Mal sabia que estava
mais para praga do Egito. Hoje, acho até graça, mas na época, meu
Deus! Que penitência!
A dona falava, agia e julgava as pessoas como um verdadeiro
“Deus”. Tenho uma amiga que sempre brincava: “Nunca pense em ir
à igreja e não pedir a benção de Deus”. Quase um sacrilégio, mas não
deixava de ser verdade. Ai do pobre mortal que ousasse colocar os
pés em seu “Santuário de Maldades” e que não esperasse o tempo
que ela achasse necessário para lhe conceder uma “benção”. Seria,
certamente, um anjo caído, ou pior, um ex-anjo desempregado e sem
referências.
Sua sala de trabalho acomodaria, no mínimo, quatro famílias
do Nordeste. Na mesa de reuniões, umas duas dúzias de reis-momos
de pernas afastadas ficariam, confortavelmente, acomodados. Isso
sem falar no banheiro. Era ex-clu-si-vo. Um luxo particular, destinado
às suas necessidades vitais, se é que ela tinha algum tipo de necessidade
(apostávamos que ela não fazia “esse tipo de coisa!”).
Quase toda semana era marcada uma reunião de
confraternização, envolvendo os vários setores da empresa. “Sim”
era a única resposta permitida, exceto em caso de doença contagiosa
ou coma irreversível. Em caso de luto familiar, era necessário
comprovação: cópia original ou autenticada do atestado de óbito do
defunto, com foto colorida em anexo. Dessa forma, a falta seria
justificável.
A cada semana, um setor era responsável pelas despesas, cujo
cardápio deveria estar a altura do Poder , que encabeçava a mesa.
Primeiramente, assistíamos a uma singela e sublime mensagem de
86 Gilmara Giavarina Delgallo
“Deus”. Momento oportuno para chamar atenção, na frente de todos,
de fatos extremamente importantes para o Planeta, como: evitar o
“erro imperdoável” de enviar qualquer mensagem para ela no “PC”,
juntamente com outros nomes na lista de endereço de e-mail, ou seja,
qualquer mensagem, fosse ela de falecimento ou bodas de ouro, o
“Seu Nome” deveria estar à frente de qualquer outro rélis mortal,
como Barack Obama, Bill Clinton ou até o Papa Bento XVI.
Naquele dia, em especial, eu estava sentada ao lado esquerdo
de “Deus”, mas longe de ser um “espírito santo”, recusava-me a
acreditar em tamanhas insanidades. Era nítido que aquela pessoa
estava precisando de mais energia no seu trono; uma descarga elétrica, por exemplo; porém, ninguém levantava a cabeça, exceto para concordar com seus desatinos.
E a coisa não parava por aí. Depois do “Momentus Supremus”,
os responsáveis de cada sessão, por livre e espontânea coação, eram
obrigados a discursar. Coisa absolutamente tosca! E eu, assim como
todos os presentes, aplaudíamos, calorosamente qualquer atuação,
fosse ela brilhante ou ridícula! Era chique discursar e obrigatório
aplaudir! Depois dessa parte, ahh! Era liinnndo! Na minha opinião, o
“momento meiguice” da festa: a hora dos parabéns aos
aniversariantes. Imaginem um bando de babacas, com cara de micoleão-dourado em frente a mesa, e os demais (tribabacas, como eu) cantando “parabéns pra você” de forma adaptada, ou seja, com uma letra mais chata que a original! Aahhhh! Como me esquecer?
Tínhamos que pender a cabecinha para um lado e para o outro (no
ritmo das palmas), senão a “fofa-mor” mandava parar tudo e
perguntava, com ar de madre Tereza de Calcutá: “Por que você não
está cantando feliz? Algum problema? Podemos começar novamente?”
E o coitado ainda pedia desculpas, inventando uma bem
esfarrapada para ser perdoado. Desculpas aceitas, o canto emplacava,
com direito a todas aquelas “cabeças de bagre” bailando numa única
sintonia. A parte boa era os “comes e bebes”. Fartos!!! Até uma colega dar-me um toque: “Não repita os doces! Senão ela vai obrigar você a ler um livro de etiquetas, que tem guardado na gaveta... e depois discutir cada item, certificando-se que você entendeu. Já aconteceu comigo.” Diante do conselho, engoli um olho-de-sogra inteiro, sem mastigar, e coloquei o outro, disfarçadamente, na bandeja. Daquele dia em diante, passei a comer dois pães com mortadela antes das reuniões, evitando, assim, a difícil penitência.
Um dia, “Ela” inventou de uniformizar os “pelotões”. Queria
todos iguais, exceto o Mestre (imagine se correria o risco de uma
subalterna exibir uma saia da Gucci, mais cara que seu terninho
francês! Imagine se o brilho de alguma camisa de seda ofuscasse o
glamour da sua renda italiana! Ahh! Nem é bom pensar!!!!).
Naquela semana, “apagados” uniformes foram colocados em
todos os corpos andantes, sendo eles modelados ou masculinos. O
que diferenciava a feminilidade do traje era um lencinho vermelho
(cafona ao extremo!!!!) enrolado no pescoço das coitadas, que, digase
de passagem, eram camuflados nas gavetas até que o guarda
piscasse duas vezes a lanterna, informando que a “Comandante de
Elite” estava a caminho.
Seu nome causava mais pânico que Fred Krugger, mais correria
que tiroteio na Favela da Rocinha. Era um tal de pular lenço de tudo
quanto é gaveta, uma ajudar a outra a dar o laço perfeito no pescoço,
jogar a rasteirinha debaixo do arquivo-morto, calçar os saltos
escondidos dentro dos armários, tirar o lápis do cabelo enrolado em
coque. Naquele momento, ninguém ligava a mínima para higiene:
era batom que passava de boca em boca, escova de cabelo que pulava de cacho em cacho, desodorante que rolava de braço em braço, e lixos lotados, com chicletes mastigados. Enfim, ela passava imponente pelo corredor, cumprimentando a todos com um chique baixar de cabeça, acompanhado de um leve sorriso. Os olhos, escondidos atrás das lentes escuras do seu Dolce Gabana, sabe-se lá aonde estavam repousando. Para escapar da “forca”, todos cruzavam os dedos embaixo das mesas, até que a passarela cumprisse seu dever: conduzisse a “Dama de Ouro” até seu VIP Habitat. Desse momento em diante, dava dó da secretária. Pele e osso, a coitada! Depois dizem que não existe reencarnação!
Aquela era a prova viva dessa constatação! Ninguém merece Karma
pior!
Lembram-se de um extinto programa do Sílvio Santos em que
acendiam uma luz vermelha, e, simultaneamente tocavam uma
campainha, com o intuito de fazer a pessoa gritar de dentro da cabine,
“Sim ou Não”, para, com sorte, levar os prêmios? Pois é! A “Dama de
Ouro” adaptou essa técnica para molestar a coitada da sua secretária.
Cada vez que “Ela” necessitava de algum serviço, fosse ele de qualquer natureza, apertava a tal sineta. A secretária tinha que largar tudo (até se fosse um telefonema com o presidente), bater na porta e
perguntar ao Amo qual era o seu desejo.
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.... água gelada, por favor.
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.... café sem açúcar, por favor.
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.....reserva no Hotel 12 estrelas, por favor?
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii..... papel higiênico Neve, por favor.
Piiiiiiiiiiiii......Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiii Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Que heróis, que nada! Aquela secretária, sim, tinha fibra, nervos
de aço. Era merecedora de um busto em praça pública.
Outro hobby da “Senhora dos Anéis” era aparecer nas colunas
sociais. Flashes e mais flashes eram seus pontos fracos (ou seriam
fortes???). Organizava campanhas e mais campanhas para auxiliar
os necessitados. Era a materialização da Bondade! A organização era
árdua: ela exigia e os pelotões obedeciam. O resultado social era
mérito dela. O suor era nosso!
Pergunte se algum dia ela foi, pessoalmente, entregar um donativo aos favelados! Pergunte se tem registros, nas colunas sociais, dessa senhora segurando no colo algum pobrezinho piolhento de nariz
escorrendo, ou dando a mão para um indigente, ou visitando um
doente em fase terminal! Ahhhh! Mas o importante é que ela encabeçou a corrente da solidariedade - diriam os puxa-sacos de plantão. Encabeçou, uma ova! Deu a ordem de cima da torre, por meio
de alto-falantes e só desceu de lá para receber as honras.
É como dizia o líder espiritual Osho: “Precisamos de Poder apenas
para fazer algo nocivo. Do contrário, o amor é suficiente, a compaixão é suficiente.” Lembro-me do dia em que “Ela” me chamou para conversar, depois de uma dessas confraternizações circenses. Encarar o confessionário naquela altura do campeonato era, no mínimo,
aterrorizante! Radiografei minha imagem: roupa adequada, saltinho
básico, unhas feitas. A única coisa que ela não se metia era com as
peças íntimas dos subalternos, pelo menos, por enquanto! Naquela
sala de Super Star, ouvi tanta “abobrinha”, que emagreci uns três
quilos de tédio!!! Pensei em dizer tanta coisa, mas não tive coragem
(como sempre)! Enquanto “Ela” falava, eu vagava ao som de Cazuza
“Ideologia... eu quero uma pra viver... Ideologia pra viver!!!”.
Se me perguntarem o que foi que ela disse, não saberia responder. Fiz apenas o que deveria ser feito: concordar e agradecer, como era de se esperar! O legal era quando saíamos do confessionário. Todo mundo
olhava, sem exceções! Saíamos como uma verdadeira Miss: sorriso
de paisagem e leve aceno de mão. Como diz meu pai, saíamos com a
maior cara de tacho.
Depois de muitas sandices dessa tirana, que se considerava altruísta, passei um bom tempo sem conviver com sua detestável superioridade. Não por opção, mas por necessidade. Digamos que quis dar uma de Guevara, mas não deu certo! Até hoje, não sei quem ficou com o “Gue”. Só sei que eu fiquei com a “vara”. As cicatrizes desse castigo tenho, até hoje, guardadas no peito.
Quando recebi alta para voltar à batalha, resolvi desengavetar
meu antigo e ardiloso plano, e lhe falar umas verdades. Ahhhhh! Como
essa vida é injusta! Não deu tempo.
Não tive o prazer de mostrar minha ousada independência para
aquela valorosa “Dama de Ouro”, em cima da sua majestosa mesa
de vidro. Ah, vida cruel!!! Quando tomei coragem, fiquei sabendo
que ela foi demitida. Mas foi demitida com classe! Respeitaram a
hierarquia: ela saiu na frente, com sua fineza, e eu atrás, com minha
ironia...