Tudo de bom, viu moça ?
Ia satisifeita para um bate-papo com um escritor. Há tempos o queria conhecer. Peguei a lotação, não gosto do último banco, mas sentei-me no último, ia descer logo mesmo, dez minutinhos até o metrô. Mas o que acontece logo em seguida é algo que gosto menos ainda. Detesto essas pessoas que sentam do seu lado, sem te conhecer nem nunca ter visto, e começam a desfiar o rosário da sua própria vida. Sofrida quase sempre. Pois bem, ela já subiu reclamando que doia isso e aquilo. Já me desagradou. Continuando sentou-se bem do meu lado. Numa análise rápida, pensei: bonitinha até, parece ter uns quarenta, quase cinquenta anos, não deve ter cinquenta, porque reclama tanto da vida? Como se só isso bastasse para uma vida. Mas, não bastando, pode ser um bom começo. Parecendo que intuiu meu pensamento ela, meio ofegante e acomodando umas tralhas no banco do lado diz: Tenho 64 anos, viu moça. To mal ssim porque tive derrame. Me espantei. E ela continua, duas vezes. Dentro do meu conhecimento leigo, comecei fazer uma parca análise, lembrei de um amigo com sequela. Cá comigo pensei: Caramba, não parece nadinha... mas... e o kiko?! E ela, tenho que descer perto daqui senão preciso subir o escadão e não consigo, preciso ir logo pra casa senão minha mãe fica preocupada comigo. Nessa altura já estava até um pouco interessada. Em vez de falar com o olhar, já fazia hãhã. Continuando ela diz: minha mãe é que cuida de mim, tem o maior cuidado comigo. Na minha cabeça formatada e previsível, logo pensei que a mãe gera, pare, cria, e depois em vez de ser cuidada, ainda tem é que cuidar. E ela continua. Minha mãe tem quase cem anos. Aí sim é que eu fiquei pasma. Pensei será verdade? - num sente uma dor na unha! Não sei porque, só eu é que nasci assim fraca, viu moça? Levantou-se com aquele corpo esguio, bonito, mas frágil, cheio de impressões contraditórias, juntou as tralhas, confirmou com o cobrador se o local era aquele e desceu, não sem antes desejar: tudo de bom, viu moça?