Esperando a Donzela
Algo me diz que cada uma dessas oitenta pessoas está numa situação pior do que a minha.
Pessoas mais velhas e mais novas que eu, visivelmente sofrendo as mazelas do frágil corpo humano.
Este lugar é terrivelmente triste; um verdadeiro abatedor de ânimos.
Eu me sinto enjoado, fraco, febril, faminto, sonolento e algo me diz (de novo) que eu não estaria assim se tivesse permanecido na minha cama – agora no outro extremo da cidade.
Tem uma porta no final do corredor que esconde negros mistérios... Já vi duas pessoas saindo de lá chorando.
Ninguém chora quando ente querido toma uma injeção no bumbum ou ganha um atestado.
A Morte está aqui, impregnada em cada centímetro desse prédio – o consolo é que ninguém aqui irá escapar dela... Todavia, ninguém parece estar afim de acelerar o processo e facilitar o trabalho da Dona Morte - essa maravilhosa Donzela que "É maior do que o céu porque é infinita, é maior do que Deus porque é sempre boa." (Albino Forjaz de Sampaio)
Esta sala de espera tem onze fileiras de cadeiras, sendo cinco delas em cada uma – isto no centro; na lateral esquerda tem cinco grupos de três cadeiras entre uma porta e outra por onde os médicos saem.
Digo, se houvessem médicos para delas saírem.
Uma destas portas – com o letreiro CONSULTÓRIO 1 estampado em azul – é onde se faz a triagem com duas enfermeiras que medem pressão e fazem perguntas rotineiras – Fuma? Bebe? Usa drogas? Toma suplementos? Anabolizantes? Alguma doença? Tomando algum medicamento? –, e, por fim, definem com um “X” o risco de morte do paciente.
Não corro risco de morte, segundo a marcação com X que a enfermeira Maria fez na folhinha.
Quanto às outras quatro portas, somente uma – CONSULTÓRIO 4 – abre de vez em quando e sai uma médica e chama alguém.
Na lateral direita tem três pessoas locadas em cadeiras de rodas.
Todas as setenta cadeiras estão ocupadas.
Tenho sede, mas tem uma maca com um velho idiotizado pelos anos terríveis de vida obstruindo o acesso ao bebedouro.
Estou na terceira cadeira da sexta fileira, entre um velho que se esvai em diarréia e uma jovem com conjuntivite; na cadeira da frente tem uma mulher que não pára de falar alto no celular e na cadeira de trás tem uma criança birrenta berrando há uns bons quinze minutos.
Prefiro o desagrado nasal às abobrinhas que penetram meus ouvidos.
Algo me diz que se eu sair daqui e ir almoçar, estarei curado. Mas eu fico, porque talvez desmaiando eu consigo uma prioridade – o segredo é ser otimista, mesmo quando uma secreção estranha sai pelo seu reto e mela suas cuecas enquanto você está pálido e com os lábios formigando.
Tem um quadro da Virgem Maria na parede do lado direito. Ela tem o olhar vago – meio enfadado, arrisco dizer. Segura lírios na mão esquerda. Na parede à minha frente tem uma televisão velha com a imagem chuviscada. Do meu lado esquerdo tem a porta fechada do CONSULTÓRIO 2. Atrás de mim tem o fedelho enjoado e se eu abaixo um pouquinho a cabeça consigo ver o rego da matraca do celular. Mas ela não é a única a falar por aqui... A celeuma é intensa demais para pessoas enfermas que, suponho, deveriam guardar as palavras pra poupar um ar que não sabem se não mais respirarão no minuto seguinte.
Alguns olham o quadro e oram. Outros contemplam a televisão. Uma mulher chora. Uma outra – linda de morrer – que, acompanha a mãe, reclama do descaso.
Todos buscam nalgum ponto fixo a fuga da realidade.
O meu é o extintor pendurado entre a porta 3 e 4 que se por algum acaso escapar, cairá no ombro dessa mulher magérrima que me olha com curiosidade enquanto derramo tinta azul de caneta nesses pedaços de papel que roubei numa barraca de pastel lá fora.
Será que minha aparência está tão ruim?
Ou eu estou com a cara boa demais pruma antecâmara do inferno como esta?
Há quase uma hora e meia eu cheguei aqui e havia somente cinqüenta e cinco cadeiras ocupadas e dois médicos atendendo.
Consigo contar oitenta e cinco pessoas e tem somente uma médica.
Estou mais fraco.
Meus pensamentos estão todos pessimistas.
Tudo gira e fica nublado de repente e o teto entra na minha frente.
O linóleo sobe e bate na minha testa.
15/07/2011 – 11h00m
Nota: este é o texto que cito no "DDD - Diário de Derrotas [8]".