DDD - Diário de Derrotas [8]

06h05m

O telefone toca. Por que ele toca? Quem me liga a essa hora? Atendo. "Bom dia". É o despertador automático da TelefÓINc-a. Depois de ter chegado três horas atrasado no meu terceiro dia de trabalho - depois de três meses desempregado -, adquiri tal serviço da TelefÓINc-a pra auxiliar os três despertadores do celular. Mas hoje vou acordar às 08h00m - tenho dentista às 10h00m. Volto pra cama.

06h27m

Luz acesa na minha cara.

- Não vai trabalhar hoje?

- Tenho dentista.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Que horas é o dentista?

- Dez.

- Vai levantar que horas?

Por que tanta pergunta?

- Posso dormir ou tá difícil?

- Desculpa.

08h05m

Agora sim é pra valer. Acordo bem. Acordo disposto. Acordo suado. Acordo como se tivesse sofrido febris moléstias durante a madrugada. Acordo com a luz do dia já feita num dia útil. E não vou trabalhar. E os bem-te-vis cantam. E os canários e etcs. da minha avó também cantam. É um dia lindo. Nem parece que daqui a pouco talvez esteja sem o décimo sexto molar, cuspindo sangue, com a boca torta de tanta anestesia, com uns pontos na gengiva, com receitas de remédios caros pra comprar e blablablá. Tudo isso na melhor das hipóteses. Paper Thin começa a tocar na minha cabeça.

08h45m

Estava terminando de passar a perna direita na calça jeans - uma que está meio suja depois de ter sido usada por duas semanas seguidas - quando o telefone toca. A pessoa - uma mulher - pergunta pelo meu nome. Fala ele inteiro. Respondo que sou eu. Funcionária da TelefÓINC-a querendo saber do pagamento da conta do mês passado. Que já paguei, inclusive. Quer dizer, acho.

- Não, não pagou não.

- É verdade, não paguei não... escuta - falei - Dá pra ser mais objetiva? Tô meio atrasado e não posso ficar de papo aqui; tem como mandar essa conta por e-mail ou me dar algum código igual no mês passado?

- Tem sim - ela diz - eu posso estar enviando a segunda via pro e-mail do senhor.

- Demorô!

- Qual é o seu e-mail?

- Vou soletrá-lo, pode ser? - Eu pergunto, porque tenho um e-mail de corno ininteligível.

- Sim.

- Sapo, Kibon, Igreja, Bola, Amor - e assim por diante. Diz ela que entendeu. Peço para que ela me repita.

- Sapo, Queijo, Igreja, Bola, Amor - E assim por diante.

- Escuta - falei - É K de Kibon, e não Q de queijo...

- Então - ela diz - foi o que eu falei: Q de SKATE.

- Skate é com K, não com Q.

- Não, SKATE é com Q.

Por que logo comigo, que há pelo menos 12 anos ANDO de SKATE?

09h05m

Não me sinto bem dentro desse ônibus... Empurrei o café da manhã pra dentro e fui até o ponto de ônibus caindo de fome. Acabei comprando dois danones que tomei de uma só vez e ainda me sinto fraco e faminto. Pelo menos estou sentado.

09h11m

Bom, não estou mais sentado. Uma velha chegou e tomou meu lugar. Ela está indo passear com a filha dela. Essa deusa que está aqui do meu lado com os pêlos dos braços pegando toda a gama possível de raios solares; com as unhas vermelhas e compridas e com uma calça jeans de cintura baixa deixando à mostra as covinhas de quadril e com uma Melissinha deixando à mostra uma tatuagem de estrelinhas e fadinhas e florzinhas no peito dos pés. Não estou bem.

09h19m

Estou pior do que antes. Agora estou entre a filha da velha e uma outra de cabelo curto e tomara-que-caia com estampa de onça e bunda grande e óculos de armação gigante. Não consigo parar de pensar que quanto maior os óculos, maior a frigidez. Ah, caralho...

09h59m

Estou entrando no consultório. Incrível como sou pontual.

10h10m

Estou saindo de consultório. Expliquei à doutora o que havia acontecido comigo no dia anterior e ela me orientou a procurar um médico pra ver o meu problema. Falou que de repente, se ela me anestesiasse e tal, poderia dar algum problema maior no meu organismo e etc. Eu sabia disso. Até cogitei a possibilidade de chegar lá e não abrir a boca - não pra falar - e deixar a operação-extração rolar. Seria uma forma tranqüila de morrer. Mas não posso morrer antes de gastar a remuneração pela madrugada que passei trabalhando no mês passado. Também remarcamos a consulta. Infelizmente, ficou pra primeira semana de Agosto. O que significa sentir o coração pulsando na porra do meu dente e continuar mastigando de um lado só ad infinitum.

10h21m

Esse conglomerado de prédios da Santa Casa me deixa embasbacado! É uma pena muito grande que lá dentro tenha gente leprosa, aidética, com câncer; se esvaindo em diarréias, em catarro, em gangrenas, em pústulas que estouram e tudo o mais. É triste não ser imortal. Nem o anfitrião que fica logo na entrada o foi. E olha que ele é o filho unigênito de Deus, hein? Ademais, esse jardim é realmente lindo. O dia está lindo. As folhas caindo em espirais de algumas árvores me deixam com o coração enternecido. Deve ser por isso que ele está batendo estranho e me deixando meio nauseado. Meio zonzo. Melhor eu ir antecipar as más notícias procurando a emergência a ficar aqui filosofando e tentando fotografar esse gato preto.

10h35m

- Você tem o cartão do SUS?

- Não. - E "Eu sou um merda imprestável" transpassa minha mente.

- O que você tem?

- Ontem eu senti fraqueza, taquicardia acelerada, tontura - pensei um pouco - dizem que é pressão - arrisquei, por fim.

- Hum, e o que você tem?

- Como assim o que eu tenho, caralho? Quem tem que saber é o médico.

É fácil ficar atrás de uma grade ou de um balcão sendo indiferente à quem está desesperado procurando algum alívio pras torturas corporais. Eu não tenho paciência.

- Senhor, calma... E pressão o senhor pode ver no posto de saúde.

- ACONTECE que eu estou AQUI e não vou à porra de um posto de saúde algum, amigo. Quero saber EXATAMENTE o que eu tenho, e não MEDIR PRESSÃO!

10h41m

Eu definitivamente não estou bem. Não estou entendendo meu comportamento de mulher barraqueira de favela com todo mundo que me contraria.

13h10m

Ainda não fui atendido. Quando botei os pés nesse lugar maldito, havia aproximadamente umas setenta pessoas para dois médicos. Agora tem umas cento e vinte para uma médica que parece mais perdida do que eu. E essas cento e vinte pessoas não conseguem poupar energia mantendo a boca fechada. Escrevi um negócio num rascunho que fiz no dia do texto RASG! e estou indo embora.

16h00m

Já estou em casa e tenho preguiça de relatar o que aconteceu. Na verdade, aconteceu muita coisa que fiquei com preguiça de escrever e descrever. Paciência. Não se pode exigir muito de alguém que tem uma vida de merda como a que eu tenho e que publicou 554 textos [555 com este] e que ainda não sabe colocar crases nos lugares certos e nem aprende as regras dos porquês e que só consegue revisar o que escreve depois que publica...

19/07/2011 (Na verdade, referente ao dia 15/07/2011)

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 19/07/2011
Reeditado em 29/02/2012
Código do texto: T3106032
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