Entre professores, prostitutas e policiais
Fiquei pensando sobre as profissões iniciadas com a letra “P”. O conjunto de letras a seguir, que utilizo nesta crônica, não deve ser lido por todos, principalmente pelos mais afetados ou que operam no campo da discriminação. Esta crônica é o resultado de pensamentos que invadiram minha mente na viagem em ônibus coletivo. E na retina e depois na mente apareceram as profissões iniciadas com “P”, como os professores, os policiais, padeiros, pescadores, padres, pastores, psicólogos, profissionais do sexo, etc. Percebi que eram várias e escolhi três que possuíssem muitas coisas em comum. É claro que as outras podem também partilhar de muitas das características que descreverei, mas me interesso pelos professores, as profissionais que lidam com o sexo e os policiais, notadamente, os policiais militares.
Não vou discutir, por falta de espaço e tempo, o que cada profissão faz ou anda fazendo. Creio que o importante é destacar o que as três têm em comum ou revelar o que apenas uma profissão é capaz de levar a efeito.
Em tempos de greve de professores da rede estadual e conflitos com os policiais militares cabe lembrar que tanto professores, policiais e profissionais do sexo, podem se constituir como alvos fáceis da “força armada do estado”. Explico melhor; professores, policiais e prostitutas, quando não andam na linha, são fortemente reprimidos pelos policiais. O papel do policial neste caso chega a ser embaraçoso, pois mesmo o colega de trabalho pode ser vítima da repressão tal como aconteceu em Minas Gerais nos anos de 1997 e 2004. Policiais também tem forte relação com as profissionais do sexo. Para se ter uma ideia basta perguntar a uma prostituta do que mais ela tem medo e certamente um dos receios será o policial que teima em “vigiar” e reprimir uma prática legal e que não deixa de atender ao público, tal como os professores e também os próprios policiais.
O que parece ser monopólio da polícia é o uso legítimo da violência baseado em preceitos legais. O leitor pode argumentar que a violência também é produzida por professores e pelas putas. Concordo, mas somente a polícia abre a possibilidade de ser chamada para a solução das desavenças que saem do controle civilizacional e somente ela pode e deve agir no que toca à manutenção da paz e da ordem pública. A questão é de matéria constitucional e o problema reside na legitimidade da violência, uma relação complicada e de difícil mensuração que nos tempos hodiernos tem recebido o nome de “força física comedida”.
Quanto aos professores, além da histórica relação conflituosa com o Estado em relação às condições de trabalho e a precariedade salarial, é mais do que notório o seu conteúdo interativo. Professores lidam com o outro, por definição estranho, diferente e complexo. Um outro repleto de metamorfoses, haja vista que os estudantes parecem não envelhecer e a cada ano os docentes são surpreendidos com novos outros em salas heterogêneas, lotadas, desorganizadas e - na maioria das vezes - com cabeças despreparadas e sem o mínimo de condições de estarem naquele local. Docentes, tal como as profissionais do sexo e policiais, em geral recebem mal. É óbvio que sei daqueles que possuem bons salários e estão felizes nas condições nas quais se encontram. Mas, tal como na década de 80, as greves continuam e tenho sérias dúvidas se de lá para cá a situação da educação não passou de uma crise ao caos aberto e tão banalizado que as pessoas não desejam sequer enxergar. A vida de professor, tal como as das outras duas profissões já mencionadas não é fácil. Os docentes, e digo daqueles em situação crítica, andam pulando de um lugar ao outro para aumentar os rendimentos. No passado, ou mesmo no presente, policiais fazem bicos pelo mesmo motivo e as profissionais do sexo há tempos já têm variado as posições e as possibilidades de emprego no intuito de também aumentarem a renda.
A questão é clara e estamos falando de uma profissão que carrega o serviço para casa. Chega mesmo a ter no contracheque as horas que deve deixar de viver em razão da preparação das aulas e do andamento do trabalho durante o semestre. A condição é tão interessante que a marca “professor”, tal como uma cicatriz, persegue o profissional. Os mais românticos vão entender isso como configuração de identidades. Compreendo como mais trabalho e exposição à interação porque, definitivamente, é cansativo e carregar o estigma de professor nos dias de hoje é, por mais que seja hilário, receber uma visão de “coitado”, “mendigo do ensino”, “salvador” e “sofredor”. Para ser mais polido com as palavras, dificilmente vamos encontrar outra profissão tão desvalorizada quanto a de professor. A precariedade, a proletarização, a desprofissionalização da categoria são sinais claros desse desvalor. Tal como disse um aluno: “qualquer um pode ser professor hoje”. E este aluno está certo, qualquer um pode ser um docente, mas também policial ou profissional do sexo. Sei que não é qualquer um que pode ser oficial, professor das “melhores” universidades ou profissionais de luxo no campo do prazer. Mas “o qualquer um” neste contexto traz a ideia do desencanto, da desistência, da desvalorização e do desrespeito. Curioso tais condições fazerem parte de uma profissão interativa, a qual lida com infantes, adolescentes e a juventude em formação. Desconheço seres humanos que não passaram por tais condições.
No que diz respeito às profissionais do sexo, um bom eufemismo para os “politicamente corretos”, é mais do que vexatórias, humilhantes e inacreditáveis as condições de trabalho. Tal como os professores e os policiais elas também carregam um complexo estigma, mas diferentemente deles, elas se escondem em “nomes de guerra”. Fato também conhecido entre policiais, mas em desuso em tempos de democracia. Na discrição, as profissionais do sexo vendem o corpo em “locais de tolerância” ou fazem uso ostensivo do telefone e de anúncios que receberam uma nova roupagem no mundo virtual. Professores buscam emprego de outra forma e policiais fazem concurso. Somente as profissionais do sexo se vendem em pelo e categoricamente por dinheiro. Basta entrar na internet ou parar em frente das bancas de jornal e telefonar para ver o preço da labuta. Professores ainda lecionam de graça pela causa e pelo sacerdócio histórico que atravessa a profissão, mas também oferecem suas habilidades em troca de dinheiro. O fato é que somente a profissional do sexo vende por dinheiro o sexo em favor do prazer sexual do outro.
Como se vê, as profissões escolhidas com “P” tem algumas coisas em comum. Talvez tenham mais diferenças. Não importa. À guisa de conclusão, cumpre apontar para duas questões: em primeiro que o poder da profissão não reside em sua história, na qualificação ou nas possibilidades abertas no mercado de trabalho. O seu poder está na capacidade de luta, mobilização de atores interessados e associação com políticas de governo. O segundo ponto, associado ao primeiro, é o valor trabalho, que segue a mesma lógica de raciocínio: quanto maior o poder, maior o salário, os direitos, os privilégios. No caso em tela, professores e profissionais do sexo saem perdendo. A educação não é uma política de governo e a prostituição ainda não recebeu a devida regulamentação. Quanto aos policiais militares, a despeito dos problemas salariais que a categoria vem enfrentando no cenário nacional, é mais do que óbvio que a luta no campo da política colocou na agenda dos donos do poder a “segurança pública” como “problema de polícia”. Neste sentido, a ideia de segurança recebeu novas roupagens e, diferentemente dos professores e das prostitutas - pelo menos em MG -, os policiais têm recebido os maiores e melhores holofotes do Estado. Com grande poder de mobilização e capilaridade territorial (professores e profissionais do sexo compartilham do mesmo fenômeno) e ainda por cima armados a categoria pode fazer valer o “manda quem pode” e o “obedece quem tem juízo”.
* - Lúcio Alves de Barros é professor e sociólogo. Organizador dos livros, “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e “Mulher, política e sociedade”. Brumadinho, MG: Ed. ASA, 2009.