O Que Não Tem Preço

Os quatro estavam lá. Como sempre fazem aos domingos.

Era uma bonita manhã de outono. Céu azul e uma suave brisa fresca que amenizava o calor memorável da estação anterior. Era sim, um dia daqueles em que a gente esquece os problemas pessoais e dá graças a Deus por estar vivo e por estar ali, no meio de toda aquela gente, como pequena parte integrante de uma grande obra. Como tênue pincelada em um quadro vivo de beleza e arte. Ao fundo as famosas areias e o imenso azul do mar, sustentando, à distância as eternas e imóveis ilhas, palco ainda selvagem de tantos sonhos. Só um pouquinho mais distante, o horizonte, inconsciente fonte de inspiração e paz, de prazer e esperança.

Bom, voltando aos quatro citados lá em cima na primeira linha, sou um deles e hoje estou nesta paisagem porque tenho a estranha compulsão de tocar saxofone na rua, com uma predileção especial pelo calçadão da Praia de Ipanema. Conto ainda com a companhia de três destemidos companheiros que incorporam bateria, baixo e teclado ao cenário descrito, alimentando a minha compulsão e proporcionando um quase frenesi coletivo. Ali tocamos tudo o que conhecemos da bossa-nova e do samba-jazz.

Naquela manhã éramos nos quatro e mais todas as pessoas que foram à praia saudar a beleza do dia buscando, em companhia da natureza e das outras pessoas, um bom domingo. Éramos de todas as idades, raças, sexos e classes sociais, mas sabíamos que tínhamos muito em comum. Ou melhor, naquele dia e hora, tínhamos tudo em comum.

Já era quase de tardinha e ainda se ouvia música no calçadão. Na frente do quarteto, o tradicional “chapéu”, nesse dia representado pela capa de nylon de uma das peças da bateria. À generosidade daquele domingo de outono, juntou-se a das pessoas, que enchiam de forma surpreendente o “chapéu”, a essa altura já invejado pelos moleques que periodicamente passavam em frente a nós olhando desejosos para aquela materialização da generosidade alheia.

Ao lado do “francês”, que é brasileiro e, além de bêbado e folclórico habitante das ruas de Ipanema, é muito querido por sua mansidão e pelo seu bailado original e completamente desequilibrado. Pois é, ao lado do “francês” surgiu uma mulher jamais vista ali. Devia ter uns 25 anos, mas talvez devido ao álcool, que posteriormente constatei ela consumir em excesso, aparentava uns 40. Estava de pés descalços, com uma calça rosa, velha e suja, do tipo “legging” e uma blusinha preta colada ao corpo. Parecia muito animada. Bom, é verdade que ela também vira a generosidade alheia dentro do “chapéu” e dele se aproximou com seu bailado igualmente desequilibrado. Girava em torno dele, como um mestre-sala em torno da porta-bandeira, e olhava alternadamente para o seu conteúdo e para mim.

Certo de que era questão de tempo para que ela, como um raio, caísse sobre o “chapéu” e se apossasse, não só de parte do seu conteúdo, mas dele próprio e sumisse na multidão, eu já organizava enxadristicamente meus pensamentos. Minhas próximas jogadas. Enquanto tocava meu saxofone, alinhavei três (re) ações que me pareceram as melhores: sair correndo atrás dela (com o saxofone pendurado no pescoço mesmo) e recuperar o fruto do trabalho; sensibilizar alguém com gritos histéricos de pega ladrão ou; britanicamente, deixar pra lá. Que fosse tudo pelo social! A arte acima de tudo! Distribuamos a nossa renda! Não veja a mão esquerda o que deu a direita!

Passados alguns minutos de tensão a bailarina se aproxima de mim. Com voz frágil, sublinhada pelo odor característico da bebida recém-consumida, fala:

- Dá pra tocar um pagodinho aí!

Seria uma tentativa para me distrair e dar o bote certeiro? Ou seria apenas um simples e sincero desejo de ouvir e dançar uma música de seu conhecimento e agrado?

Como o pagode não fazia parte do nosso repertório busquei uma coisa bem dançante que tocamos em um andamento um pouquinho mais acelerado. Ela dançou alegremente (com passos jamais coreografados). Girava velozmente em torno do “chapéu”, me olhava, rodava de novo, pulava, rodopiava saltitante e, no final da música, nada aconteceu. O “chapéu” permanecia lá. Intacto! Nem escândalo nem, talvez, a minha oportunidade de demonstrar grandeza de alma.

Parecia que tudo ficaria assim quando, surpreendentemente, ela começou a tatear suas vestes. Calça e blusa foram nervosamente vistoriadas até que, com um sorriso de alívio e gratidão, ela depositou uma moeda dentro do “chapéu”. Disse obrigado e seguiu seu caminho, coberta de alegria, deixando mudo um saxofonista que, por alguns minutos, só fez lamentar não saber tocar nenhum pagode.

Dias depois, contei essa história para um amigo que, após ouvi-la, disse essa frase, que jamais vou esquecer: “Isso é pra você aprender que dignidade não tem classe social”.

A insubstituível escola da vida!

Paulo Rego filho
Enviado por Paulo Rego filho em 19/07/2011
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