A Morte e a Dormência
Já dissera uma célebre escritora que “a vida é um soco no estômago”. Viver implica sentir: dor, felicidade, tristeza, amor. Se você vive, sente. A morte é, então, o não-sentir. Falando em frases celebres, citemos mais essa “onde a morte está eu não estou, e onde eu estou, a morte não está”. Então, a morte é a ausência de sentidos, sentimentos. É o nada: não se sente, não se sabe, não se vê, não se é. Eu olho para os lados e vejo dor, vejo sofrimento. Vejo que o que ninguém quer ver: a verdade. Então eu vivo, e nesse viver eu sofro. Eu sei que a vida é sofrimento, e por isso sofro ainda mais. A morte não quero. Temo-a: não estou preparado. Então eu adormeço e vivo o torpor. Estou vivo e não sofro; estou dormente e não estou morto. Eu simplesmente escolhi não sentir porque não suporto a fome, não suporto a miséria, não suporto a irresponsabilidade, o descontrole moral, a ganância, a felicidade desmedida. Os extremos me enlevam, sensibilizam-me os sentidos. Viver eu não consigo, morrer eu não desejo. Adormeço; e não durmo. Adormeço porque sou rocha, sedimento enrijecido. Não me movo; não sinto, apenas vivo. E continuo. Vejo e não reparo. Sim, Saramago, eu vejo e não reparo. Eu não faço; não desfaço. Eu existo, apenas sou. E passo, ou mesmo fico. Eu perscruto, espreito, olho, deflagro. Mas não denuncio. Eu sei, mas finjo não saber. E finjo tão bem, que quando vou dormir realmente não sei: deito-me apoiado ao travesseiro, viro a cabeça e sono. Nunca sonho. O sonho é a vida após a morte. Tem mais dor, mais sofrimento, mais paz, mais alegria. E eu sou rocha. Quando sonho, me esqueço. E nesse esquecimento, adormeço: volto a não sentir. Passo pelas ruas, e a vida tenta me invadir com toda a sua vicissitude. Eu a evito, viro as costas. Ela me persegue, pobre tola. Será que não sabe que eu simplesmente posso adormecer a hora que bem entender? Entro em algum banheiro. Simplesmente sorvo o sono. Volto a adormecer. A vida não me pega. Já fui sua vítima por muito tempo. Já vi mortes, já vi guerras. Não, eu não tenho poder. Simplesmente tenho escolha e escolhi não mais sofrer a vida, não mais viver a vida, não mais chorar as lágrimas inválidas, deflagradoras da minha aquosidade. Não sou água sou pedra. Água já verti. Agora não mais verto. Não verto pó, felicidade ou tristeza. Verto a inversão: eu a planto e a águo com meu sangue. E quando a vida espertamente tenta me capturar, sou mais vivo que ela: eu adormeço prontamente: não ouço o choro dos atormentados, o clamor dos necessitados, a dor dos convalescentes. Sou náuseas e estou dormente. E tu, por que me condenas, se fazes o mesmo. Nós dormimos, tu o sabes. Nós não vivemos. Estamos porque queremos e quando queremos. Na menor dificuldade, entramos em torpor, adormecemos. É nosso direito, pagamos por isto. Pagamos o preço de uma existência inexistente. Porque não somos e não queremos deixar de ser. Porque ficamos e ocupamos e reivindicamos e queremos tudo. Só não queremos a vida como ela é. Não queremos a guerra, não queremos o sangue, não queremos a chaga, o imperfeito, o mendicante. Queremos adormecer. E adormecidos estamos. Somos pedra, assim a nossa água não escorre.
Hylo Leal, outubro de 2009.