ABSURDO INSTITUCIONALIZADO

Através dos muitos milhões de anos que nos separam dos répteis mamaliformes, a natureza foi moldando nosso corpo de forma que pudéssemos conviver tanto com as mudanças ambientais quanto sociais.

Nós somos animais sociais, gregários e interdependentes dos nossos semelhantes, principalmente nos primeiros anos de vida. Nosso desenvolvimento cerebral está condicionado a muitos anos de treinamento até que tenhamos condição de assumir nossa independência do grupo familiar, para nos integrarmos ao grande grupo social.

Geração após geração, as pequenas alterações do nosso físico foram sendo transmitidas e nos tornando aptos para a vida nova que aos poucos, mas continuadamente, nos diferenciaram dos demais primatas.

O dedo polegar oponente e as alterações em nossos pés, são talvez as obras primas da nossa evolução como espécie.

Para satisfazer as necessidades, criamos “ferramentas” de pedra lascada, polida, cerâmica, madeira e metais. Deixamos o hábito arborícola e colonizamos os campos, os montes, as cavernas.

Essa mudança de ambientes e as necessidades decorrentes fizeram com que nossas mãos dos membros inferiores, se metamorfoseassem em pés para suster o corpo, agora, ereto.

Longas caminhadas em busca de alimentos foram, através das gerações modelando nosso pé para otimizar a caminhada e a eventual corrida, para fugir de predadores ou conseguir melhor caça ou qualquer alimento.

Pela Teoria da Evolução do Dr. Charles Darwin, só os mais aptos sobrevivem e para sobreviver em ambiente hostil, sem as defesas naturais (couro grosso, garras, dentes fortes, etc.) o ser humano dispunha da agilidade da fuga, que o extraordinário desenho do seu “Arco Plantar” lhe proporciona.

Nosso pé funciona como alavanca, cujo movimento se inicia no osso calcâneo e se propaga pelos: navicular, cuneiforme, metatarsianos até a falange distal do hálux, que o osso tálus transmite para o conjunto fíbula e tíbia, em movimento ondular ascensional, para que o corpo seja projetado para frente. Que fique bem claro que para tudo isso acontecer, são necessários os funcionamentos de músculos, tendões, nervos, cartilagens e muito líquido sinovial para lubrificar as articulações.

O arco plantar é de fundamental importância para a saúde do corpo como um todo, tanto que as criancinhas que nascem de “pé chato” devem fazer caminhadas, descalças, em areia fofa para estimular a curvatura e os adultos, cujo problema está instalado definitivamente são aconselhados a usar palmilha com “alma” de metal.

Se você acha que estou exagerando, pergunte a um ortopedista cujo conhecimento não se resuma à gesso terapia.

Com o sedentarismo, o ser humano sentiu necessidade de proteger o pé dos rigores do frio, que promove a constrição vascular dos membros inferiores, de onde o retorno do sangue é dificultado por nossa posição ereta e pelo diâmetro dos vasos que, por serem veias não possuem o movimento que nas artérias leva o sangue em sentido oposto à força da gravidade.

Até os anos 800, os soldados de infantaria, por terem que percorrer longas distâncias, até os campos de batalha, caminhavam descalços. Na primeira metade do século XX, os cangaceiros que viviam em bandos liderados por Lampião, Volta Seca, Corisco e muitos outros, se deslocavam a pé, por todos os Estados do Nordeste, usando apenas sandálias de sola curtida, amarradas nas pernas por causa dos espinhos e do terreno cristalino cheio de pedregulhos da caatinga, onde a temperatura, no solo, pode chegar aos 50º C.

Entretanto como qualquer peça do vestuário, o calçado passou a ser símbolo de status.

Atribui-se a Luis XV a invenção do salto alto, mas os chineses já utilizavam esse artifício para usar superfícies alagadas e como prova de alta posição na sociedade.

Em sentido contrário ao conforto e à funcionalidade do pé, a indústria calçadista foi criando verdadeiras armaduras que, pelo marketing, prometia beleza e distinção.

As pessoas com mais de quarenta anos devem lembrar-se dos terríveis calos provocados pelos sapatos apertados, cujo couro recebia tratamento especial, para se transformarem em máquinas medievais de tortura.

Que homem daquela época não desejou ter um sapato de cromo alemão de bico fino?

Felizmente caiu em desuso. Em compensação, temos essa avalanche de tênis.

Há! Os maravilhosos tênis que prometem até cadeira cativa no céu se você comprar, por um preço exorbitante, pedacinhos de lona costurados num solado, tudo sintético, que vai engessar seu pé.

E haja promessa de que o solado vai diminuir o impacto; que a suspensão a ar vai lhe impulsionar; que o sistema de aeração vai impedir que seu pé fique suado e mais uma porção de promessas vãs, como se um simples calçado tivesse a possibilidade de eliminar a Lei da Gravidade ou evitar que as glândulas sudoríparas do seu pé façam a eliminação de água com o objetivo de manter estável sua temperatura corporal.

Concordo que a população cresceu desordenadamente, mas você já reparou, nas ruas, quantas pessoas apresentam problemas de locomoção?

A força da propaganda é tal, que os órgãos governamentais não permitem que se pratiquem exercícios, em academias, ou quaisquer outros centros especializados, sem que se esteja calçado com uma dessas “maravilhas da mais alta tecnologia.”

Para que meu IMC ficasse dentro do padrão aceitável, eu tinha dois caminhos a seguir:

1 - crescer 30 cm;

2 - diminuir 24k.

Como crescer dói, eu optei por emagrecer e (para não ficar cheio de babados como um elefante magro) entrei para a academia de ginástica.

E para não comprar o tênis que iria impedir a movimentação natural do pé, fui obrigado a comprar uma sapatilha de neopreme (daquelas que mergulhadores usam para proteção do pé dentro da nadadeira) porque esse material é poroso e imita as funções da pele, permitindo que o pé fique suado e o caminhar seja confortável e prazeroso.