Um livro
Meu pai me pede que escreva um pequeno texto para fazer parte de seus escritos. Vou adiando o mais que posso inibida pela demanda. Sempre fui assim. Qualquer pedido do outro é imediatamente traduzido em imposição. Se ele quer eu contraponho, então não quero, isso não é desejo meu ! Esse processo não é feito com alarido. Não. Raramente eu discuto, isso é decidido no meu jardim, na liberdade do meu silêncio. Isso é neurótico? Claro que é. Não fazer determinada coisa porque o outro quer, ou fazê-lo por isso, dá no mesmo. A alienação sempre está presente. São raros os momentos de escolhas na vida da gente que não sejam escolhas forçadas. Por outro lado essas podem ser prazerosas também.
Estou aqui diante do teclado na aflição de escrever algo. Pareço um daqueles convidados do programa de entrevistas do Jô Soares, que ficam querendo ser engraçados a todo custo, se obrigando a isso por estarem frente ao humorista. Ou aquelas pessoas, que diante dos médicos, atiram seus conhecimentos de medicina, esperando com isso estarem fazendo bonito. Tudo o que mais a gente quer é ser aceito, ser amado, ser admirado, geralmente pelas qualidades que nos faltam, mas isso é outra longa história. Tenho de dar conta da tarefa porque corro um grande risco de ter minha participação no roteiro do meu pai como artista plástica! É verdade! Ontem ele me mostrou a reprodução de um desenho que eu fiz com tintas de aquarela numa tarde em que eu queria distrair o Gabriel com as tintas proibidas do avô dele. Brincamos e abandonamos nossas "obras" para secar, no escritório. Deixamos provas de nosso crime que, curiosamente, foi totalmente esquecido, pelo entusiasmo de meu pai pelos desenhos.
Foi assim que aquela mistura exótica de tintas foi parar no meio dos escritos dele e com meu nome em baixo. Esse fato
Injetou-me ânimo e disposição para escrever. Não sou particularmente bem dotada com as palavras, mas estou mais à vontade no meio de material lingüístico do que entre pincéis e tintas. Ficar registrada para sempre como pintora modernosa, é uma idéia intolerável para mim. Topamos aqui na idéia do para sempre. Esses textos do meu pai serão saboreados, por exemplo, por alguém que os encontre num sebo em 2040, por exemplo. A imaginação voa. Tudo é possível quando o registro está presente. Os netos do Gabriel vão sorrir das historietas que meu pai conta com tanta graça e irreverência? Terão eles a noção do antepassado talentoso deles? Existirão esses netos? Será que eu ficarei velhinha para vê-los? Cabe tudo no porvir. As idéias mais loucas, os eventos mais inverossímeis, os laços mais improváveis podem trazer à luz novas e infinitas histórias. Por que escrevemos? Para o futuro. Para deixarmos uma marca de nossa passagem pela vida que é um detalhe, um nada, uma poeirinha no Universo. Um imortal, como o Highlander, seriado da Tv no qual eu sou viciada em assistir, não tem a menor necessidade de escrever nada. Troca de nome e de lugar na Terra quando sua juventude eterna começa a despertar suspeitas e recomeça outro papel, sem maiores problemas, salvo quando outro imortal quer decepar-lhe a cabeça. O diário de um humilde cabo da frota de Vasco da Gama em sua viagem fantástica à Índia, Álvaro Velho era seu nome, tornou-se um documento precioso, já que, o rapaz, tomado por um espírito de escriba, descreveu diariamente as aventuras, os perigos da missão navegante e todas as surpresas ao chegarem às ricas terras de especiarias, esmeraldas e rubis. São testemunhos dos que escrevem que ensinam e informam aos outros homens do futuro o que é ser humano no mundo.
Isso lembra o jogo de corrida de bastão, aonde cada um vai entregando o objeto que desliza mais pra diante. Quando eu leio Álvaro Velho eu sou igual a ele, eu descubro o caminho para as Índias. País, no qual provavelmente jamais porei meus pés. Quando eu leio as pequenas jóias que são os esparsos de meu pai, eu tenho todas aquelas lembranças para mim também.
Eu tive uma preocupação com a memória de modo insistente, diria até, de modo obsessiva, quando eu tinha 13 ou 14 anos. Idade dos diários secretos que eu desconfia que minha mãe lia e eu morria de raiva pela minha própria desconfiança. Inventei de guardar "pastas de recordação", era assim que eu chamava qualquer saco plástico que eu enchia de pedaços de papéis do cotidiano. Tudo entrava nessas pastas: desenhos de Elisa, bilhetes de amigas, tíquetes de cinema, teatro, pensamentos bobos rabiscados, caixas de mentex tocadas por alguém especial, cartões de aniversário, Natal... Restos, fragmentos da minha vida que eu tinha de lembrar quando ficasse velha. As "pastas" se enchiam em poucas semanas, sendo lacradas com durex e jogadas na parte de cima dos armários. Pode-se imaginar o volume de lixo acumulado. Às vezes minha mãe ia arrumar os armários, dava uma "batida" policialesca e jogava aquelas coisas fora. Ela tinha toda a razão, mas eu me sentia profundamente agredida e ofendida. Eu precisava me lembrar de como eu era, de que fazia, do que gostava como se tivesse medo de perder aquilo tudo. Hoje eu entendo que provavelmente eu estava insegura de perder a criança que eu fui e não sabendo em que eu iria me transformar.
Eu estou contando isso tudo das pastas, com meu pensamento vagando pela memória e a necessidade de materializá-la em textos e me recordo de um envelope que desapareceu dentro de uma das pastas numa das operações de limpeza dos armários. Nesse envelope havia algumas linhas que meu pai escreveu em código de números, brincando comigo que eu seria incapaz de adivinhar o que ali estava escrito. Mais tarde, eu, caçadora implacável de papéis, partindo de meu nome e da repetição da letra a, consegui, por processo que não me lembro mais, decifrar o texto que era uma declaração de amor a mim. Nunca me esqueci desse episódio, no qual a alegria da decifração foi dupla; o papel escrito em números foi pro lixo, a lembrança do amor por escrito será eterna.