TRISTE FATALIDADE

O cidadão acorda ao amanhecer de um dia qualquer da semana, dá uma espriguiçadela, boceja, verifica a hora no relógio do seu celular ligado a noite inteira, passa carinhosamente a mão no corpo da esposa ao lado, que por sua vez se volta para ele e sorri, ele levanta e faz uns movimentos para acentuar a circulação sanguínea, vai na direção do banheiro e faz suas necessidades habituais, escova rapidamente os dentes, luta para vencer a batalha de tomar banho em pleno inverno de temperatura fria para os padrões locais, vence, lava-se, enxuga-se com a toalha já um pouco úmida do dia anterior, põe a roupa do trabalho - a essa altura sua mulher está em plena atividade na cozinha preparando o desjejum -, penteia os cabelos displicentemente se olhando no espelho sorridente por se agradar da imagem refletida, usa desodorante, respinga perfume sobre si, sai do banheiro e vai tomar seu café da manhã, abraça os filhos também acordados para o corre-corre escolar, beija sua companheira todo alegre, senta à mesa conversando trivialidades naturais, besunta manteiga além da conta num pão, come-o com café e leite em pó semidesnatado, depois mais outro pão de igual modo, termina a primeira refeição do dia, verifica se os documentos estão todos devidamente acomodados na carteira, que guarda no bolso traseiro da calça cáqui, cofia o bigode farto, segue ao quarto, encontra o MP3 que carrega consigo diariamente, torna a sorri porque a vida é realmente linda, volta para a cozinha, abençoa os filhos, volta a abraçar a esposa, sai todo contente no rumo da parada de ônibus, espera-o escutando maravilhado as músicas de sua predileção, olhares atentos à chegada dele e à hora, finalmente o transporte coletivo chega, ele sobe, puxa do bolso da camisa o cartão e passa-o na máquina postada ao lado do motorista, entra, senta pois o ônibus ainda não está lotado, agora seguro de que chegará em tempo ao local de trabalho porque já se acomodou no transporte que o levará no horário, sempre conservando seu MP3 ligado, dois plugs nos ouvidos, o coletivo vai em frente, ele ouvindo e pensando no fim de semana que se aproxima, quando poderá permanecer dois dias inteiros com a mulher e os filhos, súbito avista a parada onde ficará, puxa o fio para avisar ao motorista, mas este faz um gesto avisando que não parará ali, somente adiante, ele fica resignado porque afinal a próxima parada fica somente a cem ou duzentos metros da primeira, chega lá finalmente, desce satisfeito por estar ainda no horário, sai caminhando e cantarolando, por alguma razão inexplicável contorna o ônibus por trás, pára e olha a rua para não ser atropelado e, nesse infausto instante, o ônibus inesperadamente dá marcha à ré, bate vigorosamente nele, derrubando-o e, triste fatalidade, passa suas tantas toneladas sobre seu corpo e o mata. O MP3 impediu-o de ouvir o coletivo.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 16/07/2011
Reeditado em 30/08/2021
Código do texto: T3098948
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.