DDD - Diário de Derrotas [7]

"Na qualidade de demônio, sou obrigado a privar com excrementos em todas as formas, físicos e mentais. Conheço o desgaste emocional de eventos feios e decepcionantes, o veneno amargo da punição injusta, a corrosão dos pensamentos impotentes e, é claro, também tenho de lidar com a própria bosta. É verdade." - Norman Mailer, em "O Castelo na Floresta".

08h42m

Diante do balcão de sempre, repasso mentalmente todos os sabores de sucos que vendem aqui. São muitos, todos naturais. Hoje o dia será puxado. Ontem fiquei até tarde pra deixar tudo razoavelmente nos conformes pra hoje. Mesmo morrendo de sono, dormi tarde. Depois que vi a entrevista do rapaz dos videos do Youtube no Jô Soares. Achei bacana. Achei bacana eles entrarem no mérito da dificuldade masculina em acertar o centro do vaso sanitário. Mulher reclama disso, mas não sabe o inferno que é pra conseguir disparar um jato linear na água da privada. Eu, assim como o rapaz, desisti de mijar em pé ao perceber que eu perdia um tempo imenso limpando chão, vaso, tampa e até meu tênis depois de errar 80% do mijo destinado tão somente à latrina. Também não encaro como viadagem sentar pra mijar. Ainda mais sendo eu, a pessoa que mais gosta de mulher no mundo. Decido pelo suco.

- Açaí com laranja.

- O que mais?

- Coloca pó de guaraná também.

- Vish.

- É, tô morto de sono e hoje vai ser foda...

O fulano do caixa faz o pedido pro suqueiro e estica o braço pedindo o cartão. Olho o valor e sinto uma pontada no coração. Cinco reais e trinta centavos logo de cara em apenas um suco.

08h55m

O suco tem gosto de Novalgina. Agora estou diante de um outro balcão, pagando um e cinqüenta num pão de queijo. Encontrei dois rapazes do escritório aqui e eles estão me chamando pra ir no próximo jogo do Corinthians. Não sei de onde tiraram essa idéia de que se eu for num estádio, passo a torcer pra tal time. Só que se esqueceram que meu problema é com o futebol em si. No entanto, a minha vontade de ir a um estádio é grande - desde que seja num jogo à tarde, pra poder fotografar a coisa toda. A gente fica de marcar a parada e eu sigo meu caminho, torcendo o pescoço umas cinco vezes antes de entrar no prédio.

11h02m

Tudo correu bem com o representante da empresa que está intermediando a contratação de um plano de saúde. Depois que terminamos a parte chata ele soltou um "é, ficou faltando pouquíssima coisa... Os caras normalmente demoram um mês pra chegar nesse número de pendências". Sorri. De certa forma, foi um arrimo à minha vaidade, já que agilizei tudo em apenas um dia.

12h30m

Ela tem um dos sorrisos mais bonitos que alguém pode ver. Tem os lábios grossos e rosados e os olhos verdes por trás de óculos de lentes grossas e os cabelos, louros, são cacheados e descem até a altura dos seios, que, por sua vez, são cheios, grandes e aparentam uma firmeza descomunal. É a caixa de um certo banco que vira e mexe me salva de apuros. Ela está me falando que não consegue pagar o que eu estou querendo e está conseguindo me irritar, já que tenho um e-mail da alta gerência do próprio banco ensinando o procedimento a ser feito. Só que ao mesmo tempo que ela me exaspera relutando em passar o valor, me deixa apaixonado com um sotaque meio-francês-meio-alemão e com o levemente desesperado olhar pro alto, como que procurando a palavra correta, me derrete o coração. Enfim ela se levanta pra ir até a gerência e eu fico recostado na cadeira contemplando uma bela de uma anca - linda demais com algumas boas celulites - envolta numa calça social clara. Ela volta ainda meio temerosa, mas faz o pagamento e estica os comprovantes pra mim. Ela também tem a aliança de casada mais grossa que alguém pode ver.

12h55m

Tenho a mais hedionda das fomes e hoje é dia de ir num restaurante italiano que às quintas-feiras faz um "festival de massas" onde você paga um determinado valor e come até morrer. A fome é hedionda e me fez sentir algumas tonturas durante a manhã. Aquele turbo-juice matinal fez o efeito que eu esperava e não soltei um só bocejo. Até fiquei simpático e conversador com o efeito dele.

13h17m

Estou no banheiro, mijando. Sentado, claro.

13h21m

Estou no elevador, descendo, e estou sentindo uma umidade no rabo. Como se eu tivesse soltado um cagalhão que bateu na água e que a água, por sua vez, bateu no meu olho da cloaca. Aperto o botão do meu andar e assim que ele pára no térreo, sobe novamente.

13h28m

Estou no elevador novamente, descendo, e estou meio abalado. Fui até o banheiro, arriei as calças e minha cueca estava molhada. Às vezes acontece da última gota de urina ser da cueca, mas era uma molhação considerável. Passei o dedo na coisa e cheirei e não tinha cheiro de urina e de nada que eu já tivesse botado a narina. Enrolei um papel e passei no rabo e ele voltou ensopado dessa mesma substância esquisita. Agora saio do prédio, pensando que provavelmente é câncer.

14h00m

Não estou bem. Não era pra esses talhares estarem tão pesados. Não era pras minhas mãos estarem tremendo. A fome é tremenda, logo, não era pra eu estar empanzinado após comer meia dúzia de bolinhas de nhoque. Meu estômago se remexe inteiro e parece que se eu depositar meus tesouros intestinais nalgum lugar, ficarei melhor. Mas não rola de fazer isso aqui no restaurante. Onde o farei, Deus?

14h06m

Estou entre quatro paredes vermelhas. Tem um aspirador acima da minha cabeça, sugando os fedores que saíram pelo meu cu. Esse banheiro é bonito, chique, espaçoso, cheiroso; não tem aqueles pedacinhos de papel higiênico que mais parecem seda de boteco - aqui é rolo (e dos bons) mesmo -; um verdadeiro achado! No restaurante, ocorreu-me de voltar ao banco da Olhos Verdes e reinar no banheiro de lá, mas num súbito acesso de inspiração, entrei numa livraria de bacana que tem dentro de uma galeria a meio caminho entre o restaurante e o escritório e, bem, cá estou. E ainda estou chateado por ter ficado dezenove reais e setenta centavos mais pobre tendo comido apenas algumas bolinhas de nhoque que mal sujaram o prato.

14h17m

Agora folheio um livro de fotografias chamado "Luxury Hotels Europe" e simplesmente babo com as imagens que contemplo. Sinto fome, sinto fraqueza, mas já me sinto melhor do que antes. Vou voltar à labuta.

14h25m

Estou no saguão do prédio, diante do elevador - que está no décimo andar - e o porteiro tá me olhando esquisito. Ele olha pra rua - nada menos do que Avenida Paulista - e depois olha pra minha cara.

- Eu passo mal aqui o dia inteiro com essa mulherada, tá doido, sô!

Eu dou um meneio de afirmação com a cabeça. Ele nunca me dirigiu a palavra. Eu também nunca o vi olhando um só rabo sequer. Talvez tivesse sentido a liberdade de me fazer tal comentário após me ver quebrando o pescoço em todas as vezes que passo pela portaria - que não são poucas. O elevador chega e eu deixo ele falando.

14h27m

Estou pálido. Nunca me vi assim. Entro na recepção do oitavo pra pegar alguns documentos antes de descer pro quinto. Sinto frio.

14h30m

- Nega - eu falo de repente, interrompendo as coisas que ela falava pra mim e que eu já não conseguia racionalizar - eu tô pálido?

Ela me olhou com atenção e seu sorriso característico se transformou num ricto de preocupação.

- Muito! Você está se sentindo mal?

- Aham... Tá tudo estranho.

- Senta aí.

Sentei e tudo ficou meio devagar e silencioso. Ela continuou me olhando. Pegou o telefone e avisou o pessoal do meu andar pra não me deixar sair pra rua. Que eu não estava com uma cara boa. Agradeci, peguei os documentos e desci.

14h35m

- Você tá bem?

- Não sei.

- Você comeu?

- Um pouco.

- O que você tem?

- Não sei.

Tudo meio distante. Me dirijo até o bebedouro. Encho um copo.

- O convênio deu certo?

- Quando trago aquele documento?

- Deu certo?

Eu olho a Avenida e acho que alguém fala comigo. Olho.

- Hein?

- Cala a boca!

- Oxi, ficou louco?

- Hã?

- Você tá se sentindo bem? Está com uma cara péssima.

- Tudo esquisito.

Suando frio.

- Vai ali na janela tomar um ar.

- Vou.

14h38m

Ergui a enorme janela, coloquei uma cadeira em frente, aumentei o assento e agora estou debruçado vendo farol abrindo, farol fechando; gente indo e vindo de todos os lados e está me dando um sono gostoso. É assim que se morre, então? Estou com os braços pra fora da janela. Bastar passar a perna e cair de cabeça lá na calçada e tudo se resolve. Mas não tenho vontade de fazer isso desta vez. Não do quinto andar. Penso em tudo e não penso em nada. Inspiro profundamente e expiro vagarosamente. Pego o celular e envio uma mensagem com as minhas senhas pra minha namorada.

14h39m

O celular vibra. É o número da casa dela. Atendo.

- O que você tem?

- Tô mal.

- Não faz nada, por favor.

Há desespero na voz dela. Provavelmente deduziu que eu decidi acabar de vez com a minha vida.

- Não vou me matar, não, relaxa.

- E o que você tem?

- Sei lá, tô passando mal pra caralho, tá tudo esquisito. Vou ficar bem. Depois te ligo.

- Bem, eu...

Desligamos. Pensei em soltar um "eu amo você, neném", mas soaria melodramático demais.

14h45m

Agora estou deitado num sofá-cama confortável e todo mundo que passa por aqui conversa um pouco comigo. Pergunta o que eu tenho, se eu comi, e um ou outro arrisca um diagnóstico em comum: pressão. Uma das meninas aqui trabalhou em farmácia e diz que pode ter sido por causa do suco que eu tomei pela manhã, que acelerou meu metabolismo enquanto eu não havia comido mais nada. Não gosto de pessoas conversando comigo quando estou abalado. Sinto vontade de chorar. Mas estou sendo macho e fazendo uma piadinha ou outra; piadinhas que saem fracas na voz que tropeça dos meus lábios que formigam e estão secos.

14h50m

A cavalaria de anjos está vindo me buscar. Espera, mas anjos têm asas, não precisam de cavalos. De onde vem o barulho desses cascos contra o chão? Ah, sim, segundo o que consta, o diabo tem semelhança com um bode, e bodes têm cascos - ou coisa parecida. Segundo o que se vê por aí, também, a camarilha do tinhoso desfruta de cavalos negros e demoníacos como no Metzengerstein do Poe. Só sei que me sinto bem, leve... Acho que minha alma está sendo puxada para alguma esfera do universo que com certeza é melhor do que este planeta. Sensação gostosa.

14h52m

Acordo. A "cavalaria" é dos saltos altos da mulherada pra lá e pra cá aqui e no andar de cima. Claro. Acordei um pouco melhor. Já consigo levantar.

14h57m

- Já consegue levantar?

Três pares de olhos me olham. Esperam uma resposta.

- Consegui carro com uma advogada, vamos lá no hospital.

Levantei. Tudo meio girando um pouco. Inclusive meu estômago. A vontade de vomitar é enorme.

15h01m

Paramos os três diante da porta do elevador. O patrão indo fazer o meu serviço na rua e o responsável pelo outro setor largando seus afazeres pra me acompanhar. Shame by myself. A porta do elevador abre um e advogado encorpado salta, pensando que eu poderia desmaiar a qualquer momento. A dona do veículo - nada mais nada menos do que a dona da coisa toda - está no elevador. Tem um rapaz da TI também. O elevador tem capacidade pra seis pessoas. Nos acomodamos. Tudo apertado. Mas são apenas cinco andares. Não tem problema.

- O que você tem? - Ela pergunta. A chefona, quero dizer.

Explico.

- Ah, é viadagem.

Eu dou risada e concordo, com a vontade de vomitar aumentando e o perfil do chefe bem na minha frente. Fosse na outra empresa, eu enfiaria o dedo na goela pra despejar pedacinhos de arroz e suco gástrico nos tímpanos do cretino que tínhamos como "superior" para em seguida desferir um Meteoro de Pégasus. Olho pra baixo.

15h03m

O elevador pára no PRIMEIRO andar. A porta abre. É uma faxineira.

- Cabe mais um?

Eu sinto vontade de vomitar. Alguém fala um "opa, cabe sim". Isso me irrita. A faxineira estica o braço pro meu lado e aperta o botão do segundo andar. Eu constato que ninguém havia apertado o ZERO. Tão logo constatei isso, o elevador deu um solavanco pra subir. E parou. E travou.

15h04m

Todos parecem despreocupados e ficam fazendo piadinhas. Parece que sou o único que tem vontade de enforcar a faxineira filha da puta com os cabos de aço do elevador.

15h05m

- Que cara é essa? - A chefona me pergunta - Tá passando mal?

- Raiva do caralho - Eu respondo.

- Vish.

Desde a parada do elevador, estou com o dedo afundado no botão da campainha. E aperto o desgraçado como se fosse o globo ocular da faxineira. E imagino que meus dedos estão em brasas e o globo ocular dela derrete feito manteiga na faca quente.

15h07m

Enfim o porteiro abre a porta e eu desço a escada xingando desmioladamente.

15h16m

Estamos no carro. E o humor da motorista muito me agrada: falou que pode ser câncer e que eu não estava autorizado a morrer no banco de trás do carro dela.

- Você se daria bem como tanatóloga, sabia?

15h35m

Não pude ser atendido no hospital que ela me deixou. Eles não têm pronto-socorro. Até tem, mas só atendem excessões. E a fila das excessões era de duas horas. Prefiro morrer no meio do caminho.

15h50m

Nas farmácias eles não medem pressão. E não podem receitar nada. Entramos em três e a resposta foi a mesma: "medir pressão só na máquina ali".

- E é de graça? - Eu pergunto.

- Dois reais!

Eu dou risada. Mas a moça é simpática e me indica um outro hospital.

- Onde fica?

Ela explica o caminho e enquanto fala "descendo a Brigadeiro" gesticula apontando pra parte que a Brigadeiro sobe. Falo que não entendi e ela explica novamente. Mas ainda ficou faltando algo e eu faço cara de interrogação. Então, um rapaz que estava por trás do balcão toma as frentes e explica de uma forma ríspida e grosseira o caminho. Isso me irrita.

- Fica na sua aí, seu arrombado! - E aponto o dedo na cara dele.

Se ele me jogasse uma aspirina eu cairia pra trás, de tão fraco que estava. Além do mais, não sou dado a temperamentos explosivos - somente implosivos. Porque sei que tenho potencial de mandar alguém pro caixão - ainda mais sendo um magricela vesgo e punheteiro-tomador-de-viagra - e que se eu começar uma briga, só sairei dela sem pelo menos três dentes ou uma condenação das boas. Portanto, agradeço a moça, encaro o filho de uma boa quenga e saio em direção ao tal hospital.

15h55m

Eu falei "dentes"? Ah, sim... Amanhã tenho uma extração pra fazer. Algo me diz que ficará pra uma próxima vez. De novo.

16h25m

É isso aí! O rapaz me acompanhou numa peregrinação em TRÊS hospitais da bem conceituada região da Avenida Paulista e eu não consegui ser atendido em nenhum. A fina ironia de tudo isso é que tais acontecimentos em hospitais públicos estão sendo concomitantes ao dia da adesão a um convênio dos bons. Pra ajudar, minha mãe, que é formada em Enfermagem, está com o celular desligado e em casa ninguém atende. A funcionária do rapaz que me acompanha - aquela que já trabalhou em farmácia e etc. - recomendou que eu comesse alguma coisa. Eu já estava um pouco melhor de tanto passar raiva e andar, mas, seja dito: a fome era imensa. Assim como o mau humor.

- Faz o seguinte - ele falou - come alguma coisa e depois a gente vai na farmácia lá ver se a pressão tá boa e...

- Belê.

Meu celular vibra. É a minha nena. Reclamo um pouco do meu azar. O que deixa subentendido que estou bem.

16h48m

Bom, fiz um pratinho de comida que deixa um pardal insatisfeito depois de lamber até as bordas: um punhado de arroz e feijão, um pedaço de tomate e uma sujeirinha amarela que é purê de batatas. Deu quatro reais e setenta centavos. E a comida está fria.

17h08m

Voltei àquela farmácia do atendente mal-comido e comprei uma ficha - tipo de fliperama (o que me despertou acessos de nostalgia) - pra medir a porra da pressão na máquina. Uma funcionária me ensinou o que fazer e pegou da minha mão o resultado que a máquina imprimiu. O que ela falou?

- Sua pressão está normal, moço...

Parece piada.

17h20m

Bom, tive uma recaída e novamente estou no sofá. Todos devem estar pensando que é baitolice. Eu também acho. Mas eu não conseguir formular uma frase e sentir um sono cruel não é normal. Uma tiazinha que me chama de "colega" veio, esticou minhas pernas, conversou comigo e apagou a luz.

- Obrigado, colega! - Agradeci.

17h52m

Acordo com uma mensagem do Irmão perguntando como estou. Respondo: "Petição de miséria total. O irmão pode vir até aqui e me acompanhar no regresso ao lar?". Eu mandando uma mensagem deste calibre, é óbvio que bem eu não estou. A bateria do meu celular está acabando. Só tenho agora o Nextel. Aparelho inútil que não faz ligação e que nenhum conhecido meu tem. Por que me deram essa porra?

17h58m

Chamo o rádio do meu outro emprego. É de um setor secreto de um conglomerado bancário dos grandes. Dos maiores. Uma pessoa se anuncia como "Michelle" e pergunta no que pode me ajudar.

- Quero falar com a Carol!

É um canal exclusivo pra atendimento dos funcionários do alto escalão do banco. Passei dois anos e meio com os malditos aparelhos - SEIS - sob meu controle, portanto, sei as palavras corretas pra evitar maiores delongas e ponderações desnecessárias. No mesmo instante a voz da minha querida fez-se soar nos meus ouvidos.

- Sua vaca, por que não responde minhas mensagens?

- Sem crédito... E preguiça de você.

- Oxi, por quê?

- Vi no orkut do bicha que você foi no casamento do Bruno e nem pra me levar junto.

- E por que eu levaria uma passa-fome que nem você?

Amo essa filha da puta!

18h10m

- Eu não acredito que você ainda está aqui! Pensei que já estivesse em casa!

O chefe diz.

- E outra: amanhã tem aquele negócio do seu dente, né?

- Sim.

- Vê isso aí direito... Explica pra dentista o que aconteceu, porque vai anestesiar e etc, aí já viu.

- É.

18h16m

Como não recebi resposta da mensagem pro Irmão, ligo pra ele. Bancar o chato, mesmo. Marcamos no Parque Dom Pedro dali meia hora, no máximo. A bateria do meu MP4 está arriada. A filha da puta.

19h02m

Nada dele. Estou impaciente. Acabei de pagar seis reais num Gatorade e num Sonho de Valsa no boteco mais podre do Parque do Pedro. Também estou impaciente porque a gostosa que eu vi indo - um maravilhoso shortinho jeans em pernas grossas - acabou de passar voltando e tem a mesma cara que Predador fica depois de tirar a máscara. De repente, vejo meu ônibus parado no farol adiante. Não estou bem, e se eu for sozinho e desmaiar, não vou me perdoar; mas ficar aqui esperando não está ajudando. Levanto, corro, dou sinal e arrio o toba num banco.

19h09m

A bateria do meu celular acabou de acabar. Só faltou eu apertar o "enviar", após ter redigido uma mensagem falando que eu já estava a caminho de casa. Agora todos pensarão que eu morri por aí. E tem esse Nextel cheio de bateria no meu bolso. Que não faz ligação e não manda torpedo e não entra na internet. Nice.

19h15m

Tem um velho do meu lado. Cara de peão de obra. Cara e cheiro. Ele tem um celular bacana.

- Licença - pergunto - O senhor pode me emprestar seu celular por um minuto?

- Como assim? - Ele pergunta desconfiado.

Explico por cima o que aconteceu com a bateria do meu e com o meu organismo. Ele quer saber de qual operadora que é.

- Porra, vou ligar a cobrar. Que importância isso tem?

Pensei que levaria um murro na cara, mas ele me entregou o aparelho. A foto de uma mulher horrível era o plano de fundo. Liguei pro Irmão e avisei da minha situação toda.

20h05m

Acabei de acordar com um "Se você entregar de peito e braços abertos o seu coração a Jesus, tudo dará certo". Tudo bem a pessoa ter essa entrega pra quem ela quiser, mas precisa gritar? Não obstante, o discurso permanece: "Eu já fui usuário de crack e foi Jesus quem me tirou desse vício". Nada de bateria no MP4. Olho pra trás e o fulano que diz tais coisas tem bem cara de usuário de crack, mesmo... E de pastorzinho safado que passou a vida inteira saqueando varal e que "tomou jeito" e abriu igreja no quintal de casa. Ele não pára de falar e de querer evangelizar um outro rapaz, enquanto uma mulher e um homem vão assentindo com a cabeça e tecendo um comentário ou outro. Repete pelo menos três vezes o endereço da igreja que freqüenta. Estou há quase uma hora dentro desse ônibus e ele não está nem na metade do caminho. Era pra eu estar descendo dele. Hoje não é meu dia. Definivamente, não é a porra do meu dia.

20h11m

"Quando minha mãe morreu, eu perguntei: -'Senhor, por que comigo? Por que a minha mãe, Senhor?'. E Deus me respondeu NA HORA: 'Foi por sua culpa! Que ficava usando droga em casa e deixando ela triste'". Eu? Eu pisquei umas três vezes pra tentar acordar - eu só poderia estar tendo um sonho dos mais hilários ao ouvir um disparate de tal magnitude. Pois, ora senão pois, vejamos o seguinte: temos cá um Deus que permite que um filho chafurde numa droga pesada como o crack e que depois autoriza que Seu filho - o pobre do Jesus - o tire da lama; depois, ele ceifa com a vida da velha e lança o nóia num sofrimento sem fim, e com a maior cara de pau aponta o dedo e diz: "a culpa é sua, vacilão!". Ah, "pelo amor de Deus", é o que eu posso dizer! Quando é que essa cambada de antas vai entender que DEUS nada mais é do que a PRÓPRIA força de vontade? É tipo colocar na cabeça um EU QUERO SAIR DESSA LAMA DE SITUAÇÃO e fazer o possível e o impossívei pra se manter linear no intento proposto e alcançar os objetivos; mas não, a cambadinha TEM que dar os louros da própria força de vontade ao Saci-Pererê e ainda falar com veemência que "ouviu" a voz do dito cujo.

20h12m

Um sujeitinho atarracado que está no banco à minha frente levantou e ficou olhando o pastorzinho de fundo de ônibus e soltou um "deixa os outros dormir e vai pregar na tua igreja, porra!". Bom...

20h30m

Estou em casa. Passei o trajeto inteiro do ônibus apertando o olho do cu - sem pedir uma rolha divina pra Jesus Cristo e tudo o mais - e agora que estou aqui, com duas privadas, oito rolos de papel higiênico, inúmeras revistas e livros, e dois chuveiros, não sinto desconforto intestinal algum.

23h00m

Fui dormir.

14/07/2011

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 15/07/2011
Reeditado em 29/02/2012
Código do texto: T3097966
Classificação de conteúdo: seguro
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