BOAS SURPRESAS

Quando o contador Rogélio Fracasso tomou a iniciativa de representar a escritora Simone Paulino e procurou-me para verificar a possibilidade de entrevistá-la no programa literário da rádio local, dispus-me imediatamente a levá-la ao ar e perguntei se poderia me emprestar algum livro para mapear interesses, temas, estilo, artifícios teóricos e mecanismos peculiares de criação literária.

Deixou em minha residência “Identidade perdida” (2003), pouco mais de cento e sessenta páginas lidas numa noite de vento suave que amenizava o calor. As primeiras páginas deram conta de dissipar as imagens de um trabalho de ficção e me lançaram em um mundo em que o estilo vai se formando a partir das misturas e seleções que a autora – também jornalista, editora e mestre em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo – empreende na composição de um personagem real: o enredo consiste no depoimento de um morador de rua.

O protagonista de “Identidade perdida” constrói a imagem de bom moço que morou no Rio Grande do Sul, inseriu-se no mercado de trabalho e transitou entre vários grupos sociais – incluindo o grupo de mulheres que não resistiam aos seus encantos masculinos – e, por uma série de situações, acabou transformando-se em morador de rua perambulando nos logradouros paulistanos. Interessante que, mesmo sem casa ou endereço fixo, o protagonista enceta um relacionamento com uma mulher vivendo em condições idênticas às dele. Da relação, dois filhos, igualmente vivendo nas ruas e habituando-se aos albergues e casas provisórias.

Duas questões se formam ao longo da leitura: quais as verdades construídas? Onde memória e auto-imagem se confundem, se refazem, se distinguem? Daí o trabalho se amplia consideravelmente na medida em que se, por um lado, o estilo fluente convida ao leitor à narrativa de aventura, por outro lado, faz o mais experiente ou profissional – como gostava de se definir o grande Wilson Martins – analisar frases e temas mais cautelosamente não deixando – ou, pelo menos, tentando não se deixar – envolver pelo feitiço que sai das palavras.

Verdades, imagens e memórias são temas enigmáticos na prosa de Simone Paulino que, dois anos após a publicação de “Identidade perdida”, embarca nos contos de “Abraços negados” (Casa do Psicólogo, 2005). Neste “Abraços negados”, o foco narrativo e as confusões entre realidade e fantasia se deslocam: a realidade, sobre a qual Parmênides e Heráclito tanto discutiram, mostra o lado mais suave ao erigir os limites literários dentro dos quais as possibilidades se multiplicam. A imagem se lança ao plano secundário dando pistas implícitas da verdade mnemônica em que o narrador em primeira pessoa transpõe os fatos à verossimilhança e à universalidade.

Se tivéssemos mais espaço, os contos poderiam ser analisados em conjunto para demonstrar tal assertiva – entre eles, o premiado no Concurso Literário José Cândido de Carvalho – mas o primeiro parágrafo de “Abraços negados” (p. 55-58), conto que dá título ao livro, sintetiza uma situação atravessada em qualquer lugar do mundo e a qualquer tempo: “Eu tinha dez anos de idade quando me tornei mãe pela primeira vez. Minha doce e terna filha era já uma velhinha de faces esculpidas pelas rugas, ombros encurvados pelo peso dos sonhos perdidos e pernas vacilantes de desesperança quando a tomei para mim. Até hoje me pergunto, toda vez que me deparo com seus olhos miúdos e embaçados, qual foi o momento exato em que fizemos o pacto silencioso de trocar nossos papéis de mãe e filha”.

“Abraços negados” constitui um presente para qualquer leitor: textos curtos, linguagem fluente, estilo límpido, mensagens intricadas na qualidade a que Luiz Antônio de Assis Brasil – professor da oficina de Criação Literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e romancista premiado – define como a capacidade de “falar muito no pouco”.

Por fim, a autora integra “Grafias urbanas”, antologia de contos da qual participam grandes nomes do gênero no Brasil. “Destino: Sé”, texto que integra a antologia, rompe com a forma sintética do trabalho apresentado em “Abraços negados”, analisando uma questão muito cara aos historiadores: as diversas temporalidades inseridas em eras consideradas avançadas. Numa época em que a informação é supostamente de fácil acesso e oniricamente homens e mulheres possuem o mesmo direito, a captação da imagem da adolescente que desconhece a menarca e, já adulta, se submete às surras constantes do companheiro, transmitem ao leitor a inquietação de que nem sempre os rótulos correspondem às práticas cotidianas.

Para conhecer mais do trabalho de Simone Paulino, grata surpresa de Rogélio Fracasso, basta acessar www.simonepaulino.com.br

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 15 de julho de 2011.