Tio Nico

Dias atrás deparei-me com uma figura rara. O Tio Nico. Mas antes vou lhes contar como se procedeu o encontro com o Tio Nico.

Estava estacionando o caminhão quando encontrei o velhinho vindo em nossa direção. Vamos contextualizar primeiro. Pertenço à família verde-oliva, o Exército. Sou militar, além de graduado no mundo das Letras. O primeiro nas horas de folga e segundo na folga dessas horas. Fui com um pessoal, cerca de dez pessoas, à Região Noroeste do Rio Grande do Sul. Iríamos fazer uma espécie de pré-seleção dos jovens alistados neste ano nas cidades de Frederico Westphalen, Seberi e Erval Seco. Já fizéramos os trabalhos necessários com os jovens de Frederico e fomos a Seberi conhecer a cidade, verificar qual era o local que ocorreria a seleção do dia seguinte. No quartel chamamos de “reconhecimento”, ou simplesmente “rec”.

Eis que descemos do caminhão em Seberi e deparamo-nos com o Tio Nico, até então um desconhecido. Ele tirou o cangol que usava e apresentou-se:

_Soldado Bairros, reservista de primeira classe sem instrução. Servi em Itaqui no ano de 19... e lá vai cacetada. Disse ele que foi na década de 40, mas pelos meus cálculos deve ter sido lá pelos anos 50 e poucos. E ficou o Tio Nico lá, em posição de sentido, pés unidos, mãos espalmadas ao longo do corpo, imóvel, a olhar-nos. E nós a admirá-lo. Ele aprendera esses movimentos militares há mais de cinqüenta anos e não esquecera.

Cumprimentamo-nos.

Precisa de melhor recepção? Segui rumo à prefeitura. Era lá onde receberíamos os jovens alistados. Tio Nico correu à frente e à porta da prefeitura, apitou anunciando nossa chegada. Parou também em sentido e esperou-nos passar, em sinal militar de respeito.

Admirei-me com aquele senhor. Bastava um bem-vindos e eu já me contentaria. Há tanto tempo que não mais vestia a farda, convivia com poucos militares porque em Seberi não tem quartel, e ainda assim era mais disciplinado que muito soldado recém egresso. Percebi o quão importante pode se tornar o Exército a um cidadão que sai da sua cidade e vai morar em outra longe. O jovem entra em contato com outra cultura, outros costumes, realiza novas atividades, coisas que não tinha noção que faria.

Notei, também, a valorização que as pessoas mais velhas dão a princípios fundamentais, ainda que aprendidos ou reforçados muitos anos antes. Tio Nico era a expressão máxima desse apreço às Instituições. Não somente ele cumprimentava-nos com prazer e admiração. Muitos transeuntes acenavam, davam “oi” ou simplesmente comentavam entre si, baixinho, olha eles lá!

Conheci outras pessoas sensacionais de Seberi. O Tenente Perugino foi uma. Formou-se Sargento e evoluiu na carreira até o posto de Tenente, já estando próximo da aposentadoria (ou reserva como se chama a aposentadoria militar). Italiano até no modo de falar indiscretamente, contou-nos casos e mais casos da sua vida na caserna enquanto proporcionava-nos um almoço digno de General.

Interessei-me muito sobre a vida do Tio Nico e saí em busca de mais informações sobre a vida daquele admirável senhor. Seu nome completo: Antônio Ferreira de Bairros. Profissão: além de aposentado (creio que seria mais interessante chamá-lo de reservista), vigilante da prefeitura de Seberi há 35 anos. Pessoa muito conhecida na prefeitura, o legítimo “Severino”, o homem-bombril, mil e uma utilidades.

Conversei com o pessoal e pensamos em retribuir um pouco o carinho do nosso ex-militar Tio Nico. Não havia muitos recursos à mão. Um Sargento sugeriu um gorro. Explico: uma espécie de boné militar. Presenteamos então o Tio Nico com o dito gorro.

Eis que ele pôs a lembrança na cabeça e não tirou mais. Aliás, minto. Toda vez que passávamos pela porta de entrada da prefeitura ele retirava-o, tomava a posição de sentido e esperava-nos cruzar.

Experiência sem igual ter conhecido o Tio Nico. Ter conhecido pessoas tão amigáveis como as daquela região. Cresce o compromisso em formar bem os jovens que adentram na vida da caserna. Aumenta a responsabilidade quando se sabe o quão importante você pode se tornar a uma pessoa. Quem não dirá que daqui a cinquenta anos um novo Tio Nico apresente-se a outros jovens militares?