NARCISO E ECO: ALÉM DO MITO

Eco: nunca conheci alguém que fosse tão egoísta como você. penso mesmo que teve o fim merecido. não poderia ter uma morte mais justa que esta: morrer, virar uma flor, após passar anos e anos admirando sua própria aparência. miserável!

Narciso: Eco, qual o porquê de proferir ásperas palavras em relação a mim, você não sabe que elas machucam, que são vorazes navalhas desejosas por despedaçar corações de deuses e de humanos?!

Eco: se eu conseguir fazer isto ficarei realmente feliz, pois nada menos você merece.

Narciso: inda continuo sem entender o que me diz. suas palavras são-me bastante agressivas e obscuras. embora não me sinta muito bem ouvindo-as, eu gostaria de lhe entender. saber por que tanta acidez.

Eco: pois bem, miserável homem, serei mais clara, para não haver mais desculpas de pouca compreensão. recordar-lhe-ei as razões que fazem de você meu ódio, embora antes fosse meu amor.

Narciso: então se apressa, pois estou muito curioso para saber o que fiz que lhe deixou tão furiosa comigo. que transformou seu amor por mim em ódio.

Eco: pois bem. evidentemente que se lembra do mito contam por aí, a torto e a direito, sobre nós, quero dizer, sobre você (ainda não entendo o porquê de me desdenharem na estória e lhe colorarem como principal personagem, quando sou eu a chave que estrutura toda a moral do conto, para os que não encerram as interpretações sob o prisma da psique, claro!)

[grosso modo] você é fruto do amor entre uma ninfa (Liríope) e um deus (Césifo). ao nascer foi profetizado, por intermédio de Tirésias, que você teria um fim trágico, caso se apaixonasse.

eu fui a ninfa- uma bella ninfa, diga-se de passagem!- que recebeu um imerecido castigo. por ocupar o tempo de Era, não deixando que a mesma flagrasse o grande Deus Olímpio com suas amantes- óbvio que isto foi uma intriga que contaram a ela-, esta, a procura de descontar seu ódio por Zeus em qualquer um, resolveu me castigar cerrando-me a boca, permitindo-me somente repetir as últimas palavras proferidas por meus interlocutores.

muitas ninfas se apaixonaram por você, porém nenhuma atenção sua obtiveram. comigo não foi diferente. amei-lhe ardentemente, todavia nenhuma admiração sua consegui ter. como todos já sabem, definhei- digo sem vergonha, porque meu amor fora sincero. não esqueça o tempo verbal em que foi proferido o verbo ser: meu amor fora (um pretérito mais-que-perfeito) sincero!

seu primeiro e derradeiro amor foi você mesmo, quando viu seu reflexo no lago. foi uma paixão imediata. a atração que teve por si mesmo foi tamanha que não mais conseguiu- não quis- sair do lago, pois era ele o local onde se encontrava seu amor: você mesmo!

Narciso: como eu poderia esquecer-me de tal anedota, quando, ora sou eu muito injustiçado, servindo sempre de exemplo a não ser seguido, ora tenho esta estória interpretada pelos que estudam a mente humana, sendo símbolo de seus arquétipos?!

Eco: injusti...? (com muita raiva)

Narciso: perdoe-me querida Eco, não quero ser grosso, mas peço que me ouça, tal como lhe ouvi.

Eco: tudo bem. fale.

Narciso: agradeço. em continuação de minha fala eu iria dizer que não só me lembro, mas também protesto a má interpretação que contém esta anedota.

após tantos anos que os gregos contaram este conto, as pessoas ainda continuam a ignorar alguns detalhes que são de suma importância. entretanto, não critico os leitores de minha história,

porque foram os gregos que não precisaram alguns nacos subjetivos que são inerentes à mim- à todos os seres humanos!-, os quais poderiam ser determinantes para uma transparente reflexão baseada na minha experiência.

Eco: você chegará logo à parte principal? sua prolixidade me incomoda e me fadiga. (fala impaciente e aborrecidamente)

Narciso: sim, claro, claro. me desculpe. não foi minha intenção exceder nas palavras. embora pense que você tenha sido um pouquinho mais excedente que eu (sorrir suavemente).

para não mais me fazer prolixo, me aterei somente em um grande detalhe que todos ignoraram, inclusive os gregos. começo a cogitar que nem mesmo eles sabiam disto.

eu morri nesta estória, porém, de maneira alguma, foi por conta de meu egoísmo, por minha auto-suficiência, por amar apenas a mim mesmo, por assim dizer. antes, morri por razões que são contrárias: minha morte advém pela ausência do outro, por pura dependência de outrem.

Eco: hum? por favor, fale sério comigo. se há alguma virtude em você, até onde me lembro, é que é um refinado crítico de si mesmo. Então não me venha com essa de outro, de que as razões de sua morte são oriundas da dependência do outro- logo você! (sorrir ironicamente)

Narciso: mas este é o real motivo, quer aceite, quer não. talvez quando eu explicar detalhadamente fique mais claro o que quero dizer.

Eco: please, do it!

Narciso: parece que os leitores deste mito nunca atentaram para algo óbvio: morro porque não é possível ao homem, seja ele mitológico ou não, viver sem o outro. o que verdadeiramente me mata é minha suposta auto-suficiência. Dito doutra maneira, “sem outras pessoas não é possível viver no mundo, não é ser-humano”. eis minha máxima, a qual foi profundamente ignorada, e por este motivo fui por todos estes anos mal interpretado, mal lido.

Eco: ___________________________________________________________ (um silêncio se apodera de Eco. ela já não tem mais a raiva dantes, antes queda interessada no que Narciso diz).

Narciso: como eu não conseguia amar ninguém, inclusive você- não que fosse por falta de beleza de sua parte. você sempre foi muito linda!-, senão somente a mim mesmo, fui deteriorado por minha solidão. por mais que não queiramos depender de outras pessoas, de suas opiniões, de seus amores, de seus sentimentos.,- meu caso-, são-nos inevitáveis, se quisermos viver, se quisermos ser seres-humanos.

você agora me entende, eu fiz-me entendido? é muito importante para mim que compreenda o que acabei de falar. sim, porque apenas assim terei certeza de que alguém me entendeu- acho que não poderia ser outra pessoa, senão você a primeira com quem compartilho a verdadeira boa interpretação de minha estória. afinal de contas era quem estava lá comigo.

vamos, diga alguma coisa, seu silêncio me incomoda.

Eco: me desculpe. é que estou meio que perturbada com o que me disse. precisei de alguns minutos para processar o que me dizia- fiz isto concomitantemente suas explicações.

Narciso: entendo (sorrir)

Eco: estou sem palavras. jamais poderia imaginar que seria este a razão de sua morte. Peço que me perdoe. agora percebo o quão injusta fui com você, ao lhe tomar por um mesquinho egoísta, que não amava ninguém. que se importava tão somente consigo mesmo.

Narciso: minha bella, que não se perturbe o coração por isto, pois você não poderia entender doutra maneira, visto que erraram os gregos em não contar esta parte, a qual é muito importante, e erraram os leitores de outros séculos porque restringiram a forma geométrica de ver um mito!

você não foi a primeira.

Eco: não, não meu querido. não há como não me perturbar. peço (se achega para perto de Narciso) perdão por meu julgamento. fui muito rude e injusta com você.

Narciso: já lhe disse, não há problemas. Quero dizer, tem sim um problema: se eu soubesse na época tudo que sei sobre mim- sobre a humanidade- jamais morreria da maneira que morri.

Eco: não lhe entendo, meu querido. (além do tom de voz mudar, Eco fita os olhos em Narciso de forma apaixonada, como na época em que estava viva)

Narciso: se soubesse que não dá para viver sem outras pessoas, eu teria procurado amar mais, manter contato com os deuses, com os homens... com você.

Eco: agora entendo o que me diz (fala contente por ter ouvido as últimas palavras). correu-me dois pensamentos, repentinamente

Narciso: por favor, compartilhe comigo.

Eco: o primeiro é que você disse que com outras pessoas temos a oportunidade de amar, de conhecer outros. o que me disse parece muito interessante. pensando bem, é verdade que não dá para viver sem outros indivíduos. mas você deu bastante ênfase ao amor. e, infelizmente, não vivemos só de amor, o mundo não parece ser um reflexo do amar. antes, o que temos, e em abundância, é a violência e outros sentimentos, outros estados... enfim, outras...

Narciso: sim, Eco, eu entendo-lhe perfeitamente e de modo algum discordo de você, contudo, em meio a este feixe de sensações, de razões, nós podemos expecienciar tudo o que você salientou que existe no mundo, no outro. e sabe por que? porque estes estados, a violência, o amor., fazem parte do homem, sem este complexo de estado, sensação,razão., não existe a humanidade do homem.

Eco: nunca tinha pensado por este lado.

Narciso: pois é, minha linda, eu também só venho ter estes pensamentos agora, após tantos anos. mas me diga, qual foi o outro pensamento que passou em sua mente.

Eco: ah, sim. outra coisa que pensei foi: se você morreu porque não se abriu para o outro, então eu também morri por causa do outro, no sentido de que morri porque você não me deu atenção.

Narciso: hum... (pensa um pouco) a princípio, e em princípio, concordo contigo, todavia, sem quer desmerecer sua observação, faço outra observação, a qual me faz ampliar, em alguma medida, sua reflexão: sim, foi por causa de um amor, portanto do outro, que você morreu, entretanto, a marcante diferença é que sua morte aconteceu porque não lhe dei atenção (neste momento Narciso se entristece e se constrange ao mesmo tempo).

você não morreu porque não se relacionava com outras pessoas. no mito, Era lhe castigou exatamente porque falava demais, isto é, estava sempre em contanto com gente. já minha estória perpassa exatamente pelo desdém de outras pessoas. e lembrando ainda que citei muito o amor como símbolo de relacionamento, afetividade, porém não desconsiderei a tristeza, violência, alegria, frustrações etc., experiências profundamente pertinentes aos seres-humanos.

Eco: acho que não tenho mais o que dizer, depois de suas clarividentes explicações, argumentações.

Narciso: não diga nada (sorrindo). para terminar a exposição de meus pensamentos, saliento ainda que lamento um pouco pelos homens que ainda estão vivos e nada podem saber sobre o real significado de minha história (queda pensativo após proferir tais palavras).

Eco: verdade, verdade. inda bem que têm os que habitam o Hades. estes nada sabem ainda sobre suas explicações meu querido, ou sabem?

Narciso: bem pensado, bem lembrado. você foi a primeira pessoa com quem compartilho minhas reflexões sobre mim mesmo. talvez, só talvez, seja interessante aos moradores do Hades conhecer a moral do mito

Narciso, pois já que não há como comunicar-se com os que ainda estão vivos, comunicar-me-ei com os daqui, afinal, esta sociedade também, e ainda, admira as anedotas gregas.

Eco: penso coerente a você. mas agora vamos, já está tarde, passa da hora e eu ainda quero ouvir Homero cantar alguns hinos aos deuses.

Narciso: sim, vamos. entretanto ainda tenho uma última coisa para lhe dizer, para perguntar.

Eco: então pergunte.

Narciso: sei que lhe fiz mal; fui o causador, indireto (?), de sua morte. porém ouso lhe perguntar se haveria alguma chance de nós..., de nós... (dá uma pausa entre um ‘nós’ e outro)

Eco: fale, fale, estou ficando ansiosa (sorrir amorosamente)

Narciso: de nós, de eu ter seu amor novamente?

Eco: não acredito que você me perguntou isto (Eco sai correndo, chorando).

Narciso: Eco, o que houve, o que eu disse? (Narciso sai correndo atrás de Eco, tentando entender o porquê de tal atitude).

Jhonny Rodrigues
Enviado por Jhonny Rodrigues em 14/07/2011
Reeditado em 18/07/2011
Código do texto: T3095646