DDD - Diário de Derrotas [6]

05h40m

Preciso fazer a barba. Preciso fazer a barba. Foda-se a barba.

06h15m

Preciso levantar. Preciso levantar.

06h20m

Enfim levanto pra ser logo assaltado por um maravilhoso enjôo e por uma bela dorzinha de cabeça. Ressaca. Plena quarta-feira. Ontem eu cheguei e fui direto pra cama. Muito me impressiona eu não ter acordado mijado ou vomitado. E sonhei a noite inteira com trabalho. E acordei pensando em trabalho. E fui dormir pensando em trabalho. Graças a Deus eu tenho um trabalho a consumir meus pensamentos em todas as 24 horas por dia! Adoro!

07h35m

A mulher que está com a pança de pochete enfiada no meu ombro acabou de me mandar tomar no cu. Só porque eu fui mais esperto do que ela: a cretina ficou dez minutos no ponto pensando na morte da bezerra e na hora de passar na catraca ficou revirando moedas na bolsa, e tudo o que eu fiz foi, elegantemente, passar na frente e repousar as ancas no último banco vago. Eu até pensei em ceder o espaço, mas eu não tenho respeito por mulher que tem mais bigode do que eu.

08h40m

Bom, estou na Estação Armênia do Metrô. Saí da Leste, estou na Norte, e logo mais estarei na Sul.

08h50m

Tô meio puto da vida. Saindo da Estação dei de cara com um cachorro dormindo num canto, em cima de uns tapetes e cobertores, com as patas pro alto e com a língua caindo pro lado. A coisa mais linda e engraçada do mundo, atraindo olhares de todos que por ali passavam. A minha sorte foi ter enfiado a câmera na mochila num último momento lá em casa. Agachei, abri a mochila, tirei a câmera – depois de xingar quarenta vezes procurando-a – e, bem, o meu brinquedinho de registrar momentos tem um leve problema: um botão que está quebrado e que custa cento e trinta reais pra arrumar – e eles arrumam em cinco minutos. Como não sei transformar folha de hortelã em nota de cem, enfio coisas pontiagudas e metálicas no lugar do botão e bato minhas fotografias (claro que esse processo costuma despertar uma avalanche de palavrões e de registros únicos perdidos). ENFIM, não tinha nada pontiagudo e metálico na minha mochila. E quando por fim achei um clipe que prendia uns trecos que escrevi, um desgraçado bateu o pé ao lado do cachorro e ele acordou e saiu andando. A minha vontade foi de “desenrolar” o clipe e enfiar nos tímpanos no cretino. Mas segui meu caminho.

09h25m

Bem, agora estou tremendo de ódio. O que aconteceu? Eu conto: cheguei às nove e cinco na recepção da SABESP, mostrei a impressão que eu tinha e que continha tudo o que eu precisava e tudo o que eles precisavam saber que eu precisava, daí a mocinha recepcionista pediu meu documento. Como eu não suporto nada nos bolsos – principalmente uma carteira cheia de espaço -, abri a mochila e puxei a carteira. Tirei meu documento de indigente (?), dei a ela, e fiz uma cara de derrota inegável ao ser fotografado por uma webcam. Beleza. Aí eu tentando ajeitar as coisas dentro da mochila e de repente entrou um grupo de dez negos fazendo balbúrdia e perguntando de um tal evento que aconteceria ali. Alguns minutos depois eu percebi que minha carteira havia desaparecido. Tirei e coloquei as coisas da mochila umas dez vezes, chacoalhando blusa, touca, short de academia (que eu tento ir, mas não consigo). Nada. Bati em todos os meus bolsos. Nada. De repente todos saíram e só fiquei eu e as duas moças, que estavam pouco se lixando pra minha aflição. Eu já tinha passado mentalmente minhas horas de espera em delegacia, Poupa-Tempo, banco, cartório, blábláblá, blábláblá. Daí eu perguntei:

- Moça, minha carteira por algum acaso não caiu aí na sua mesa? – E debrucei na bancada, perscrutando a porra toda – e aproveitando pra dar uma olhadinha no decote dela. Nada. "Nada" na bancada.

- Não – ela respondeu, depois de passar o olho por tudo.

Eu tremia. Bebi um copo d’água, pensei um pouco e voltei à moça.

- Esse povo que tava aqui agora – falei – Foi pra algum evento aqui dentro, né?

- Sim...

- Essa câmera aí – falei – funciona?

- Olha, não sei...

Great.

- Porra... – Cocei os cabelinhos que estão do jeito que eu gosto e que terei de cortar pra não perder o emprego – Vê isso aí, porque se alguém pegou e a câmera filmou, dá pra pegar o espertinho.

- Vou ligar pro pessoal do monitoramento! – Adiantou-se a outra recepcionista.

Ela ligou. Ninguém do monitoramento estava por lá.

Fiquei cinco minutos olhando pro teto e pensando em voltar pra cama e chorar até morrer.

- Ah, olha a sua carteira aqui!

Olhei. Estava atrás do monitor dela. Eu não sabia se sentia remorso por ter desconfiado do povo, alívio por ter sido poupado da agonia de tirar todos os documentos de novo ou vergonha por ter causado discórdia logo cedo na vida dos outros. Agradeci e saí. Depois de dar uma outra olhada no decote...

10h00m

Bom, ninguém aqui nesse lugar sabe de nada. Esse lugar aqui parece o escritório que o carinha do 500 Days With Summer trabalha. Tem uma mocinha ali que não tem nada da Summer, mas tem lá seus belos atributos. Ela me ignora, como é de praxe. Liguei no escritório pra receber alguma luz e tudo ficou mais nublado ainda. Só me resta esperar e ficar assistindo o mulato ali limpando os vidros. Parece ser um serviço bacana. Mas eu sei que só parece.

10h07m

O dia está lindo! Estou sob um monte de árvores, ouvindo os pássaros cantando e olhando uma bunda ou outra que passa por aqui. E também uns carros que não posso ter a não ser que eu trabalhe umas três vidas e só gaste o dinheiro da bolacha água e sal que me sustentará – quatro delas por dia. Tem uma brecha aqui em cima, entre as folhas, que revela um céu azul demasiadamente lindo; o sol da manhã dando um certo dourado nas folhas verdinhas. Sabe o nome disso? VONTADE DE MANDAR TUDO TOMAR NO CU E IR VIVER DE VERDADE! Mas não posso.

10h30m

É no mínimo engraçado não ter um bebedouro aqui. É no mínimo muito engraçado ter uma torneira com vazamento aqui. Aqui, na SABESP.

10h50m

Como ninguém me ligou, resolvi ir embora. Quer dizer, passar na Sé e depois ir pro trabalho. Em casa, que é bom, só depois das nove e meia da noite – com sorte. A caminhada da SABESP até o Metrô é considerável, até... E faz sol. Os policiais fazem um pente fino com os motoqueiros, patricinhas tirando a carta no DETRAN; incompreensível cheiro de bolo de chocolate pairando no ar. E algumas mulheres. E fome.

11h17m

Estou na Sé e acabei de desligar o celular. Pediram pra eu voltar na SABESP.

11h50m

Estou na recepção da SABESP e pediram pra eu voltar pro escritório. Conseguiram resolver o problema pela internet.

*

Folclore: entre às 10h50m e às 11h50m eu atravessei pelo menos uma dúzia de faixas, andei sob o sol escaldante – depois de umas três semanas fazendo um frio de lascar em São Paulo, justamente HOJE o sol veio antecipar o Verão do Agreste -, levei enquadro da polícia, fotografei uma lagarta, comi um amendoim de cinqüenta centavos e bebi uma lata de Coca-Cola e pensei em me jogar de cabeça nalguma pedra moqueada no fedorento rio Tamanduateí. Tudo isso com uma ressaca violenta. Eu devo ser merecedor de tais melindres dignos de Jigsaw que a vida me impõe.

*

12h15m

Bom, estou na Sé, pela terceira vez no dia de hoje. Tem um carinha aqui que fica tocando piano. Encostei do lado pra apreciar. Mas mais por causa da moça que está debruçada no piano do que pela música em si.

12h23m

O amor é lindo, né? Encostou um rapaz do meu lado e deu umas assobiadas pra uma garota que estava no piso inferior e ela não ouviu. Daí ele saiu correndo em direção às escadas. Então ele apareceu atrás dela e eu fiquei imaginando o que ele faria; se colocaria as mãos nos olhos dela ou se sei lá, lascaria um arriscado e molhado e repentino beijo na orelha. Mas ela virou quando ele estava na metade do caminho. Ela, uma moça linda de morrer. Ele, com uma Virgem Maria tatuada no antebraço. Ele encostou do lado e ficou fazendo graça, como se não a tivesse visto e ela ficou rindo e voou no pescoço dele e eles deram algumas bitocas e um abraço longo e apertado – e, nisso, o piano rolando solto do meu lado. Por fim, deram-se mãos e saíram papeando indo pra algum lugar bacana. Eu também queria um romance assim. Mas não posso. Não no horário comercial de uma quarta-feira. Meu romance é com trinta e oito nomes de pessoas que tenho que pegar os documentos e dar uma de babá, às vezes. Portanto, saio da Estação e vou até o outro QG pegar umas paradas.

14h10m

É isso aí... Esse restaurante costuma ser freqüentado por modelos, até. As mulheres daqui costumam me despertar paixões instantâneas e efêmeras. Elas nunca percebem isso. Nem fazem a menor questão de perceber. E nem me vêem. E não que eu queira um outdoor, mas eu gosto de ressaltar o inverso do que a maioria esmagadora pensa e me fala (alguns indivíduos chegando até a fazer comparações entre a minha humilde efígie com aquele namoradinho da Madonna). O que eu quero dizer é que entre todas as milhões de possibilidades de olhares, bem, fui escolhido por uma ex-integrante do Fat Family que mastiga a feijoada de boca cheia e pisca pra mim vez ou outra.

19h30m

Depois do almoço eu só consegui parar agora pra respirar.

*

Folclore: Imagina o dia que você menos conseguiu pensar os SEUS pensamentos... Agora, multiplica por dois! Foi assim que me mantive entre o "almoço" e a "respirada" acima.

*

21h04m

Ainda estou no escritório, e só terminei de digitar isso agora. Queria que a Starbucks fizesse umas entregas. Mas não faz. Tive que me contentar com café frio, mesmo. E chega a ser redundância se eu mencionar que não tem como eu chegar em casa daqui vinte e seis minutos, né?

13/07/2011

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 13/07/2011
Reeditado em 29/02/2012
Código do texto: T3093492
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