Carta do Futuro (ano 2100)

O jornal Tribuna Sangrenta publicou nesta manhã mais um show do grupo Matadores Divertidos, este que vem lotando festas comemorativas, casas de apresentações e similares. Os integrantes, que se intitulam Vanguardistas do amanhã, trucidam em média de seis a dez pessoas por espetáculo. Nessa morbidade, que veio sendo implantada na cabeça dos seres mais jovens e outros com maiores dificuldades para o raciocínio, desde o saudoso ano de 2011. A novidade é que está nas páginas do arcaico Guiness Book pela mega lotação dos locais onde mostram suas artes de matar. Neste em questão realizada no antigo parque de apresentações Canto da Paz, hoje conhecida como Necrose Social, subiu ao palco de sacrifício seis seres antes considerados humanos, duas crianças negras filhas de empregada doméstica, dois homossexuais, um indígena que estava escondido na Gruta de Maquiné temendo pela sua vida, já que atualmente essa espécie se encontra na quase total extinção.

O sexto objeto de regozijo público foi uma professora de Ética, profissão que há muitos anos não existe mais. Abaixo, na arena que hatibualmente tem duelo de atiradores antes dos shows, com direito a armas de todos os calibres, indo de submetralhadoras a fuzis e lança míssil, segundo a própria Tribuna, calcula-se que para cada espetáculo são mortas mais de cem pessoas direta e indiretamente.

Outra grande atração são os leilões de virgens, com lances disputadíssimos, objetivando meninas de seis a oito anos, que se encontra em raridade nestes tempos. Estas vêm de países que fazem fortuna prendendo suas filhas desde os dois anos de idade em gaiolas especiais, que ficam em porões e em quartos, sem contato algum com o mundo exterior. À família só é dado o direito de qualquer conversa apenas com a mãe e o pai, este vestido de armadura especial, dotada de alta voltagem na região pubiana.

Voltando aos Vanguardistas do amanhã, usando computadores de ultima geração com telões de 50 metros quadrados e sons que saem das muralhas em volta, vão sorrindo enquanto os gritos de pavor daqueles que sentem a aproximação da morte são acompanhados de melodias que o público delira, no instante em que as crianças negras eram decapitadas pela serra elétrica. Homens e mulheres se masturbavam e literalmente gozavam de olho no palco lavado de sangue. Os outros chamados de escória vão sendo pendurados em cabos de aço e mergulhados em tanques de álcool, guinchados, pingando o líquido que arde nas mucosas e pedindo clemência. Começam a rodopiarem no imenso guindaste enquanto os artistas com lança-chamas completam o número. Os gritos aumentam nos amplificadores e a platéia pede bis, após o fogo consumir toda a carne, os esqueletos ainda escorrendo Coágulos do sangue cozido despencam no meio da arena, onde o público inicia mais um ritual, este como fase derradeira do espetáculo.

Homens, mulheres e crianças se despem e rolam sobre os esqueletos queimados, numa sessão de loucura que culmina com uma orgia coletiva. Tudo isto gravado e assistido ao vivo para aqueles que possuem os direitos dos canais fechados.

Talvez seja o último texto que escrevo, pois sou um dos chamados de escória e estou preso nesta jaula imunda para o próximo show desse grupo de assassinos. Tenho direito de mastigar uma espuma acre para salivar e maquiar a sede, pois nos permitem apenas um copo de água durante os dias que antecedem a atrocidade. Guardo na memória os livros que li e com muita saudade me lembro dos últimos exemplares da literatura de contos e poesias, romances e das viagens que provocavam em mim.

Neste tempo de selvageria, onde pais oferecem seus filhos em troca de nada ou matam simplesmente para não ouvir um choro, penso nas histórias que ouvi sobre um crime de cem anos atrás, numa época em que um casal de facínoras dignos desta era. Ele, pai; ela, madrasta, lançaram uma linda criatura de apenas cinco anos de idade de um prédio de muitos andares. Segundo relatos, houve uma comoção em todo o país e a dupla foi presa e morreu na cadeia: ela de tuberculose, ele de distúrbio bipolar. Hoje, esses crimes são banais, comuns e apreciados por todas as pessoas, qualquer passo que se dá e fácil ver as mais lindas criaturas encontradas em becos com vísceras expostas ou cabeças esmagadas, mulheres sendo violentadas e trucidadas em plena luz do dia, bebês atirados nos cestos de lixo quando não chegam com a cara que os pais sonhavam.

Queria, neste momento, morrer de morte natural ou suicidar-me, para não morrer sob tamanho vilipêndio. Quem sabe o dilúvio de Noé voltasse a acontecer nestes últimos momentos que me restam, já que a jaula ao lado se abriu e os gritos do homem que pedia paz em praça pública me dizem que o espetáculo vai começar?!