A Insustentável Leveza

Lentamente se levanta e sai do carro. Gira 180° e com a mão direita ocupada por um pote de iogurte, utiliza a outra para trancar a porta, não sem um pouco de dificuldade e mau humor. Já está quase na hora de atravessar o longo corredor e, antes de tomar o elevador, encontrar-se com ela: com a amiga a quem visita todas as manhãs. Amiga sim, pois amigos não são aqueles que nos falam todas as verdades, francamente, sem rodeios? Que nos escutam as lamúrias e em quem, mesmo que não nos dirijam uma só palavra, podemos confiar cegamente?

Caminha lenta e preguiçosamente, como é de seu costume nas manhãs de segundas-feiras, cumprimenta um ou outro e passa em revista o seu final de semana: sábado, o churrasco na casa de um dos amigos mais próximos, aonde comemoraram um aniversário (como tinha comido! E bebido! Nem se lembrava de como havia chegado em casa!); domingo, não deu praia. Acabou no clube, aonde encontrou os mesmos bons amigos, que lá estavam de ressaca tomando aquele chopinho medicinal. Juntou-se à cura. O papo foi bom. Falou-se de tudo, mas bom mesmo foi quando falaram de todos (preferencialmente dos que não estavam ali).

Chopinhos e salgadinhos depois, lembrou-se daquela amiga e, travando um gole, pensou em como ela deveria estar, sozinha, sentindo-se abandonada, quem sabe, durante todo aquele final de semana. Sentiu um misto de pena (da amiga, mas estranhamente, de si também) e desconforto com aquela lembrança. Desconforto tão grande que suspendeu imediatamente o chope e pensou em caminhar pelas ruas arborizadas e quase desertas do bairro. Foi!

Já era final de tarde e, na ausência de pessoas nas ruas, percebia apenas os sons de alguns pássaros e dos poucos carros que por ali circulavam sem pressa. Ouviu alguns fogos, talvez em comemoração aos gols do domingo, mas os ecos da lembrança de sua amiga eram mais fortes. Caminhou rua acima até sua casa e, sob a forte impressão que aquela lembrança lhe causava deitou-se em frente da televisão. Programando 90 minutos no “timer” e sem a menor vontade de fazer o que quer que fosse, abandonou-se até a manhã seguinte que, aliás, é hoje.

Estranha sensação. Não sabia como olhar para a amiga esta manhã. Pensou em não visitá-la, pensamento imediatamente rejeitado em nome de uma fidelidade já de alguns anos. Aproximou-se procurando não chamar a atenção das pessoas, como se fugisse de olhares alheios. Escolheu o caminho mais longo, isolado e escuro. Nesse dia, o encontro estranhamente tomava ares solenes e a expectativa trazia uma ansiedade desproporcional e até descabida, para uma visita que, afinal de contas, era praticamente diária. Algo lhe dizia intimamente que, nesta específica manhã, se surpreenderia com coisas que talvez preferisse ignorar.

Parou a metros da porta, respirou lenta e profundamente buscando aquietar seu coração. Dois passos à frente e nada mais a fazer senão abrir a porta e encará-la. Seja o que Deus quiser! Estaria pronto! Entrou. Olhou para a amiga e não viu diferença alguma em sua aparência. A mesma silhueta e o mesmo comportamento mas, o silêncio daqueles segundos iniciais reforçou sua certeza de revelações que, em breve, revolveriam suas entranhas. Pôs suas coisas sobre uma mesinha de cabeceira, descansou seu casaco sobre uma cadeira, respirou fundo uma vez mais e expirou todo o gás carbônico que lhe restava nos pulmões. Retirou os sapatos e finalmente subiu.

Sem lhe dirigir uma só palavra, com uma frieza desumana, a amiga lhe revela impiedosamente: 100,2. "Cem vírgula dois quilogramas"! Pela primeira vez em toda a sua vida atingia a casa dos cem quilogramas.

Triste manhã de segunda-feira!

Paulo Rego filho
Enviado por Paulo Rego filho em 11/07/2011
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