O espetáculo da solidariedade
Há quem ajude pessoas e não conte isso a ninguém. Mas existem aquelas pessoas ou entidades que fazem da doação um grande espetáculo para promover-se. Pura jogada de marketing. Essa supervalorização de si acaba diminuindo a importância da doação e põe em dúvida a real intenção de ajudar o próximo. É o que vimos na reportagem do Jornal do Almoço do dia 20 de agosto de 2011.
A jornalista Cristina Ranzolin valeu-se excessivamente dos pronomes “eu” e “minha”, parecendo propaganda eleitoral. Demonstrava em cadeia estadual que ela e a RBS são pessoa e instituição solidários. Retratando a Ilha da Pintada, uma das tantas ilhas de Porto Alegre, retornou ao local depois da reportagem que o jornal exibira na semana anterior, mostrando as condições precárias de vida dos moradores de lá.
Acobertado por um motivo social e que sensibiliza as pessoas, voltou à Ilha da Pintada dizendo que veria se a reportagem da semana anterior surtira o efeito esperado de levar a população a doar alimentos e roupas àqueles miseráveis. “Cenas como estas que impressionam não só vocês que estão em casa, mas também nós jornalistas”. A reportagem começou mostrando ela acondicionando roupas e comidas (da população e dela, como bem destacou) numa caminhonete e o deslocamento da equipe de reportagem até a ilha. Pouco antes de chegar, ela disse “Logo que passei a primeira ponte, o cenário mudou: difícil imaginar que famílias inteiras morem nessas casas, se é que podem ser chamadas assim”. E lá está o uso do verbo em primeira pessoa: “logo que passei a primeira ponte”. Difícil imaginar, isso sim, que sendo jornalista há anos, ela ainda não tenha se deparado com a pobreza. Ou será que era drama para mostrar-se sensibilizada?
Retratou nada além da realidade que conhecemos em Porto Alegre, Uruguaiana e em qualquer cidade brasileira: barracos ancorados por madeiras velhas e crianças dormindo apertadas e passando fome. A visão das casas sob a ótica dela e frases como “cenas que não ME saíram da cabeça” e “EU resolvi ir até lá para ver se alguma coisa mudou depois que a história deles foi mostrada aqui no JA (Jornal do Almoço) e também para levar algumas doações MINHAS” deixaram claro que a intenção não era mostrar como os moradores da ilha viviam, mas para que todos pudessem ver o tamanho da solidariedade da Cristina Ranzolin.
As condições subumanas daqueles moradores realmente entristecem, mas não são diferentes dos moradores de outra região periférica de qualquer cidade ou de Uruguaiana. Chocou, sim, ver uma criança nua, naquele frio (chovia e ventava) e a mãe, ao ser interpelada pela repórter o motivo de seu filho estar sem roupa e os demais descalços, responder que os calçados estavam para chegar e “ele (o menino) fica assim mesmo. Ele é que nem índio. É só tentar colocar a roupa nele que ele tira”. É difícil aceitar que os pais não consigam vestir uma criança de cinco anos. Quiçá dos filhos mais velhos. Parecendo candidata eleitoral, Cristina fechou aquela cena dizendo “O garotinho que não queria saber de colocar roupa, acabou aceitando que EU O VESTISSE COM UMA ROUPINHA QUE EU LEVEI DA MINHA FILHA”. Precisava dizer que era da filha dela?
A preocupação residiu em demonstrar a solidariedade da emissora. Autopromoção velada e barata. O ápice da autopropaganda ocorreu no final da reportagem “Só mesmo indo até lá, COMO EU FUI, para ver como a vida é dura para eles”. Realmente, no eixo estúdio-shopping-casa não existem casebres.
Caso semelhante presenciei numa formatura de conclusão da 8ª Série de uma turma de Educação de Jovens e Adultos, tempo atrás. A escola era particular, mas seus alunos não pagavam mensalidade. Eram pessoas carentes e recebiam, inclusive, transporte gratuito: um ônibus buscava-os em pontos-chave da cidade e levava-os para casa ao final das aulas. Até então, uma iniciativa louvável. Mas no discurso, o então diretor falou-lhes “tenham orgulho em estudar nesta instituição, pela qualidade do ensino”. Nada de aludir ao fato de serem adultos que retomaram os estudos depois de anos e concluíam o Ensino Fundamental conciliando a escola ao trabalho dentro e fora de casa. Não os encarou como lutadores, perseverantes, mas como sortudos que tiveram a felicidade de estudarem numa escola de primeira linhagem. Se o objetivo era destacá-los, não teve sucesso. O que ocorreu, em verdade, foi uma supervalorização da escola. Os alunos não eram mais o foco e sim, a escola. Da mesma maneira, a reportagem do Jornal do Almoço não objetivou mostrar que os moradores da Ilha da Pintada necessitam de um programa do Governo que preste assistência e melhore as suas condições de vida. Intencionou-se, sobremaneira, mostrar que a RBS é solidária e que a Cristina Ranzolin é uma excelente cidadã, prestativa e preocupada com o bem-estar social. A ajuda ao próximo fica em segundo lugar. Em primeiro está o quão bonzinho somos.