Presente antecipado de Natal

As intuições de Karen sempre foram certeiras. Naquele mês uma delas insistia em fazer parte dos seus pensamentos. Apesar de ter superado o trauma do ano anterior no trabalho, sentia alguma coisa pairando no ar.

Apesar de ter aprendido a ser submissa e a cumprir ordens absurdas calada, alguma coisa apertava seu coração. Chegou a comentar sobre essa intuição com uma pessoa do trabalho, que tentou convencê-la do contrário. Duas semanas se passaram até que, naquela segunda-feira, Karen entrou na sua sala às 7h da manhã e sentiu a presença de um guia espiritual ao seu lado. Alguns chamam de protetor, outros de anjos da guarda, porém o que importa é que alguém estava ao seu lado. E isso era um fato incontestável.

Karen fechou os olhos e fez uma oração pedindo proteção e direcionamento. Inconscientemente começou a arrumar suas gavetas, suas pastas e alguns trabalhos ainda por terminar...

Mesmo sem perceber ela estava deixando uma etapa da sua vida para trás. Por um momento sentiu um leve torpor e sentou em sai cadeira giratória. Naquele momento não só a cadeira rodava, mas toda a sua história naquele local. Ainda estava sozinha na escola pois, naquele dia, o seu turno havia começado mais cedo que o habitual. Tudo estava quieto e vazio, devido às férias. De repente, como que por um encanto, um filme passou em segundos pela sua memória . Karen pode sentir um frio gelado na boca do estômago.

Meio a contragosto ela levantou para beber um copo de água. Era antevéspera de Natal. Percebeu, de relance, o responsável pelo RH da empresa passar pelo corredor, reunindo-se na sala ao lado, com outras chefias imediatas que, diga-se de passagem, tinham acabado de chegar. Naquele momento, Karen entendeu o motivo da visita, ou melhor, das visitas. Respirou fundo e decifrou o tal enigma antecipadamente. Foi chamada a tal sala. As três pessoas que lá se encontravam falavam de coisas pouco significativas, tais como: contratação de funcionários para o próximo ano, a possibilidade de não haver expediente na véspera de Natal, entre outros assuntos insignificantes, bem parecidos com as suas presenças e o papéis que desempenhavam naquela Instituição. A instituição que poderia ser chamada de “O gigante de pés de barro”, cujo ditado que minha avó sempre dizia, encaixava-se perfeitamente no contexto. “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento.” Mas quem era ela para ser ouvida? Ninguém. Apenas um número e nada mais.

Apesar de estranhar aqueles comentários, Karen sabia que uma notícia “bombástica” estava por vir. Sentada naquela cadeira o0s segundos pareciam intermináveis horas. De repente, interrompendo aquele papo descontraído entre as duas mulheres que estavam ao seu lado, aquele senhor olhou para Karen , desvirou a pasta e comunicou secamente asua dispensa, ou melhor, a sua “rescisão de contrato”, como se ela trabalhasse na Globo e estivesse terminando sua participação na novela “Ciranda de Pedra”.

Depois de tantos anos de dedicação àquela empresa, estando naquele cargo por esforço próprio e mérito estritamente pessoal, Karen foi demitida sem justa, ou melhor, sem nenhuma causa! Nem o respeito de demitirem-na em silêncio, ela mereceu! Foi demitida em meio a risos e olhares satisfeitos, fazendo valer a frase “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco.”

Foi como amassar um papel rascunhado e jogar na boca do lixo. E por falar em lixo, naquele momento, ao longe, uma voz comunicou-a que o motivo da sua demissão foi devido a tudo que havia acontecido no ano anterior. Karen não disse nada, apenas reviveu (mentalmente) o que teria feito de tão anormal no ano passado, data em que “essa pessoa” além de não ter sido responsável pela escola, não havia presenciado nada, sabendo “por altos” da história, por terceiros. Época em que ela pagou um preço altíssimo por revelar a uma “superior” ( superior só no cargo...) o que realmente acontecia dentro daquelas paredes. Estava sendo demitida porque aquele castelo do “faz de contas” não poderia ser ameaçado com a verdade, sob nenhuma hipótese! Ninguém a avisou que naquele lugar tudo deveria parecer transparente mesmo que, para isso, a sujeira tivesse que ser varrida para debaixo do tapete. Ninguém a avisou que era preciso “brincar de escolinha” para garantir o emprego.

O que mais consumia o sangue de Karen era admitir a sua própria ingenuidade por acreditar que tudo já estava resolvido. “Colocado em pratos limpos”. “Vamos colocar uma pedra em cima”, frase ouvida, há um ano atrás, da boca de uma pessoa em quem tanto confiava e até então admirava! O que ela não entendia era porque demoraram um ano para demiti-la. Um ano de tentativas sucessivas de superação. Um ano obedecendo às ordens sem questionar e realizando tudo o que seu cargo exigia. Um ano arrastando-se e quase pedindo desculpas por existir! O que revigorava seus ânimos eram os abraços inocentes daquelas crianças que corriam pelo pátio e os papos escandalosos e irreverentes daqueles adolescentes, que alegravam um pouco aqueles corredores, com suas contagiantes filosofias. Porém o problema era outro, Karen precisava ser punida pela verdade incontestável dos seus testemunhos. O famoso “boi de piranha”. Servir de exemplo aos demais que ousassem “falar demais”...

Durante o tempo que Karen ficou ali dentro não conseguiu esconder, nem por um momento, a tristeza que transbordava pelos seus olhos; obrigados a testemunhar tanta falta de cumplicidade. Ela esforçava-se para limitar as suas ideias (que nunca eram bem vindas), mas recusava-se a enterrar os talentos da equipe, dos quais eram impedidos, constantemente, de desabrochar. Karen contava os segundos para terminar o expediente e voltar para casa, seguindo um rumo que, finalmente, poderia determinar. Sentia-se cumprindo pena em liberdade, como uma pessoa disse a ela, uma semana depois da demissão: “Estavam te fritando aos poucos, lentamente, dia a dia. Você não merecia aquilo!”

Pura verdade, pura maldade! A queima de arquivo foi seu veredicto final. Karen assinou aquele papel frio e devolveu a caneta emprestada. Com a alma retalhada olhou, pela última vez, para aquelas duas criaturas ao seu lado e sentiu náuseas. Flashes das semanas anteriores passaram rapidamente pelas suas lembranças. Quanta hipocrisia! Relatos emocionados falando de parceria, sentimentos, presentes de boas festas, tudo premeditado! A “cara de pau” foi tanta que ela recebeu um presente de Natal vinte minutos antes da sua dispensa. Isso sem contar as mentiras, mentiras e mais mentiras. Karen nunca pensou que pudessem existir pessoas tão inescrupulosas a esse ponto. Nunca pensou que fatos, como aqueles, poderiam acontecer dentro de uma escola, com pessoas ligadas à Educação. Nunca pensou em presenciar tanta falta de caráter em sua vida. Mas uma coisa valeu à pena: Karen passou encarar qualquer filme de terror como um conto de fadas. Depois de passar uma temporada no Inferno, o “Massacre da Serra Elétrica e Jogos Mortais” agora eram romances “água com açúcar” para ela.

Após receber a cópia daquele documento Karen, ainda trêmula, deixou a sala sem sentir o chão sobre meus pés. Escutava os sons à sua volta sem conseguir identificá-los. Chorava muito, nem tanto pelo fato, mas pela falsidade, pela hipocrisia, pela impotência perante o inevitável! Chorava por ter calado quando deveria protestar. Chorava por lembrar que não percebeu seus filhos crescerem, que recusou brincar ao lado deles ou fazê-los dormir pôr estar ocupada, realizando o serviço que não conseguia terminar nas horas de trabalho diárias. Chorava por ter sido inocente o bastante por acreditar que o bem sempre vence o mal. Chorava por acreditar, ingenuamente, que a justiça nunca falha!

Naquela noite, apesar de revoltada, dobrou os joelhos ao lado da cama e pediu explicações a qualquer Santo que estivesse de plantão naquele momento até que, vencida pelo cansaço e três doses “cavalares” de calmantes, adormeceu com a cabeça encostada no colchão da sala. Sonhou que ,cabisbaixa, encontrava-se sentada num banco. Era uma praça desconhecida localizada no centro de uma rua deserta onde ela permaneceu, por algum tempo, com os joelhos encostados na testa e envoltos por seus próprios braços e por seus absortos pensamentos. Percebeu uma garoa fina tocar seus cabelos misturando-se, continuamente, com as lágrimas que insistiam em brotar, ainda rebeldes, dos seus olhos já conformados. Ficou assim, estática e vazia, por um tempo incalculável. Sem perceber, virou seu rosto, ainda apoiado nos joelhos, observando que ao seu lado estava sentado um homem. Cabelos molhados pela garoa, pele clara, pés descalços. Com o olhar mais profundo que já havia visto em toda sua vida, fitou sua face carinhosamente. Num ímpeto de confiança, cansada e confusa, Karen deitou a cabeça no colo daquele desconhecido, sem prévia permissão para tal aconchego. Não conseguiu fitar o seu rosto por muito tempo, apenas sentiu aquelas mãos escorregarem entre seus cabelos, extraindo do seu peito aquela dor latejante. Aquele homem estranho e ao mesmo tempo tão íntimo, disse-lhe muitas coisas, das quais Karen ouviu calada e sonolenta. Percebeu que num certo momento ele aconchegou a sua cabeça na concha das suas mãos e a colocou delicadamente no banco. Karen não conseguiu abrir os olhos nem mesmo para agradecer. Estava anestesiada. Escutava seus passos afastarem lentamente, sem mesmo ter a chance de perguntar o seu nome.

Acordou. O Sol já estava alto no céu. Ela abriu a janela do seu quarto e fitou o infinito. Lembrou-se do sonho, porém esqueceu-se de todas as explicações e conselhos que recebeu daquele homem desconhecido. Apenas uma frase foi restaurada daquele sonho, quase real: “Esse foi o seu presente antecipado de Natal. Sua vida de volta. Outra chance de ser feliz.”

Karen sentou na cama e pensou na essência daquelas palavras. Era exatamente aquele ambiente que a impedia de ser feliz. Como podia caminhar, vivendo em meio ao lodo? Como podia sorrir sendo obrigada a compactuar com tamanhas injustiças? Como podia “voar” num ambiente em que todos rastejavam para sobreviver? Pensou na justiça que estava cobrando de Deus sem perceber que Ele estava advogando em sua defesa. Ele sabia a necessidade que ela tinha em expor aquelas verdades. Ele sabia que não estava pensando somente em si mas em todas as pessoas, profissionais, crianças, adolescentes e pais que confiaram na transparência do seu trabalho.

Karen respirou fundo e levantou da cama. Estava animada para montar a árvore de Natal, comprar presentes para todos que amava e preparar a ceia com muitas sobremesas calóricas. Não havia perdido um emprego mas ganhado a sua liberdade e com ela, a sua alegria de volta! Tinha saído viva daquele lugar, fato que não foi privilégio de todos. Pena ter deixado nele, grandes amigos, que assim como ela, jamais terão coragem de quebrar as algemas, talvez por necessidade, talvez por comodidade ou, quem sabe, por medo de abrir a porta e descobrir que existe luz fora daquela escuridão! Talvez por medo de desencaixotarem os seus sonhos, de desatarem as suas amarras, de lutarem por aquilo que acreditam...

Karen passou o dia feliz e ocupada, fazendo coisas que gosta, ao lado de pessoas que realmente a amavam. Sabia que ainda viriam outras recaídas pela frente mas não queria pensar nisso agora. “O futuro a Deus pertence”.

Quando o relógio bateu meia noite ela saiu na rua e olhou para o céu. Agradeceu a Deus pelo seu presente antecipado de Natal e deixou que a chuva fina da noite revestisse seu corpo como um bálsamo de fortalecimento para uma nova vida, que dali a poucas horas, tão certa como a luz do sol, estava prestes a surgir...