Chico da Dalva
Cada um de nós tem lembrança de um colega de infância, “meu tipo inesquecível”. Maria Mineira, aqui neste Recanto das Letras, escreveu com magia sobre essas lembranças em “A menina da roça e a panelinha preta” (recomendo a leitura). O meu tipo inesquecível, conheci no Grupo Escolar Marcondes de Souza: Chico da Dalva, o menino mais aplicado da sala. Tinha os cabelos escorridos e repartidos do lado esquerdo. Calçava alpargatas Roda azuis, a meia branca, a calça azul do uniforme presa ao suspensório cruzado nas costas e no peito para que não se perdesse dos ombros. A camisa branca de pano de saco alvejado tinha uma alvura intensa. O Chico não era apenas asseado, tinha, também, o aspecto de desinfetado, acabando com a esperança de qualquer micróbio nele fazer vida ou quebrar o jejum.
Na sala de aula jamais se sentava nas carteiras da frente – ali era o ninho dos sobrenomes bons. Mas o seu jeito equilibrado e o domínio que exercia sobre os outros meninos, faziam com que a frente da sala sempre ficasse onde ele estava sentado. Dali ele reinava sem ser rei, atendia ao ser solicitado. Sabia ouvir, atitude que fez dele o líder da classe.
Não tinha pasta de couro nem de madeira. Levava na mão seu caderno de papel de embrulho, encadernado com barbante, com o lápis apontado em cone – para avivar e expor o grafite – retido entre as folhas, e me parecia que (após 40 anos isso ainda me comove), ele nunca trazia o embrulinho com a merenda. O Chico tirava de letra esse detalhe, dizendo: “esqueci em casa”. Sua letra era grande, bem legível, inclinada para a direita, em rumo ascendente, a última palavra da linha sempre acima da primeira, prenunciando seu futuro, seu caráter desabrido, sem nada a esconder.
À tarde, depois de terminada a tarefa de casa, o Chico colocava a lata de óleo a tiracolo e caminhava pelas ruas até a estação da Leopoldina com a mesma austeridade mostrada nas aulas, oferecendo canudinhos de doce de coco e de leite perfilados no interior reluzente do tapuer primitivo. Pelo cuidado com que o Chico dirigia seu comércio, ele mais parecia um joalheiro que vendia diamantes. Os canudinhos do Chico da Dalva, como o diamante puro, não tinham jaça. Chico, a criança que eu criança conheci. Chico, meu tipo inesquecível, comerciante de doçuras.