Noite passada tive um sonho intrigante. Eu trabalhava de advogada nas portas do céu, diretamente subordinada ao anjo ajudante de São Pedro. Fui chamada para defender uma senhorinha que tinha acabado de morrer. Dona Júlia, 92 anos, longos cabelos brancos presos num coque, um xale sobre os ombros, estava sentada numa nuvem bem quietinha na ante sala dos Portões do Paraíso. O anjo ajudante me explicou que a situação da velhinha era aparentemente fácil de se resolver: "É um Código Delta Um Dra. Lina" – me informou o anjo passando os autos do processo de acusação. Isso queria dizer que uma pessoa do convívio da acusada havia se manifestado contra a sua entrada no Reino dos Céus. Dei uma lida rápida no dossiê de Dona Júlia anotando as principais passagens para o julgamento. Fiquei animada com o que li. Dos sete pecados capitais a idosa cometera apenas dois, e dos menos graves – gula e luxúria. Do segundo havia uma atenuante: agira norteada pelo amor. Além disso, sempre seguiu os Dez Mandamentos à risca. Olhei pro anjo sem entender seu comentário: “Aparentemente porque Anjinho? É causa ganha!” O anjo balançou a cabeça pros lados. “Ela não vai colaborar. Se declarou culpada e que vai se valer do direito de permanecer calada.” Sem entender nada, fui sentar-me ao lado da cliente. O julgamento começou. Doze homens bons compunham o Grande Júri presidido por um preposto do Chefe. Apresentei meus argumentos: “Dona Júlia foi uma batalhadora! Mãe e filha muito amorosa, sempre atenciosa com seu semelhante e com o coração livre de maldade.” Terminei confiante os memoriais. Mas o veredicto final foi um grande choque: UM VOTO PARA O INFERNO. Olhei desesperada para a velhinha. Eram necessários 12 votos favoráveis. Ela precisava testemunhar. Com certeza algumas lágrimas daquela simpática criatura tocariam o mais duros dos corações. Mas Dona Júlia manteve-se irredutível. Comecei a preparar o recurso de apelação, quando achei uma irregularidade no julgamento. “Escuta Dona Júlia, encontrei uma brecha aqui. Um dos integrantes do Júri é a mesma pessoa que se manifestou contra a sua entrada no procedimento administrativo de seleção aos Céus. Anulado o julgamento, a senhora tem direito de ir pro Paraíso.” “Não querida!” Ela finalmente quebrou o longo silêncio: “Este jurado que me mandou pro inferno foi o grande amor da minha vida. E se agora eu for para o Céu, advogada, eu o estarei condenando à minha eterna presença, e conviver com sua indiferença será pior castigo do que ir ter com o Canheta.“ Dona Júlia me deu um sorriso lindo e um beijinho na bochecha. Agradeceu o interesse e pegou o elevador para o subsolo.


Guarujá, 07/07/2011

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