A maldição da beleza grega
O século em que vivemos é o 21. Quando minha professora da segunda série pediu a turma para fazer um desenho sobre o ano 2000 eu desenhei uma cidade sendo invadida por discos voadores. Eram os idos de 1977. Outro dia vi algo parecido no recente filme Presságio, com o Nicolas Cage. Se não é um grande filme, para os padrões do estilo ficção-científica de ação está acima da média. Pois bem... O ano 2000 já é passado e nada aconteceu. Ao menos nada além do que se esperava – e se esperava muito. A Terra é a mesma e nós somos os mesmos. Em minha infância, havia muita maldade nas crianças ao meu redor. Eu já sabia, sem ter lido Freud, que as crianças eram pequenos monstros. Bullying? Sempre houve. E não é apenas um problema da crueldade das crianças. É fruto da inseparável ignorância que acomete as pessoas, desde remotos tempos. E nada mudou muito. Continuidades e permanências, para poucas rupturas.
Das inumeráveis permanências da história das sociedades, uma que muito me incomoda e remonta de épocas muito anteriores à minha infância está no tocante aos padrões estéticos pré-estabelecidos. Vivemos, ainda hoje, sob o que costumo chamar de a maldição da beleza grega. Os famosos concursos de Miss – hoje démodé – sempre usaram o padrão “biométrico” da Vênus de Milo. O império romano do ocidente agregou a cultura grega clássica. O império ruiu, mas as culturas agregadas – incógnitas ou não – permaneceram. De lá pra cá, ser belo é ser magro, atlético, branco. Durante a tão mal falada idade média o padrão grego perdeu força, já que as pessoas tinham uma preocupação muito mais relevante: a sobrevivência. Com o Renascimento, e a cultura grega voltando à voga, o ideal de beleza volta a ser cultuado com toda força. Alguns artistas como Renoir, por exemplo, pintaram belas mulheres “gordinhas”, tentando ainda resistir à nova estética que se descortinava, esta que viria estabelecendo um novo, estreito e cruel padrão de beleza feminina. Aquilo era o último suspiro de liberdade das mulheres se alimentarem, algo hoje quase proibido. É verdade que os padrões estéticos femininos sempre sofreram variações. Mas com a disseminação global de uma cultura eurocentrista – por conta de toda a dominação política européia sobre o mundo, da qual todos têm certo conhecimento –, uma coisa ficou combinada entre os estetas: ser belo é ser branco, é parecer-se com um europeu. Aliás, o recomendável é comportar-se como um europeu, pensar como um europeu. Mas uma novidade estava por vir. Com a “ressurreição” da Vênus de Milo, já não bastaria para as mulheres apenas serem brancas. Elas deveriam agora serem também magras, terem quadris curvilíneos e seios médios. E até hoje, assim são as beldades do cinema, da televisão, das revistas: magras, quadris curvilíneos, seios médios. E, claro, importante, brancas. A explosão dos meios de comunicação no século 20 espalhou por todo o planeta tal padrão. E devemos nos perguntar “Que porcentagem das mulheres do planeta podem obedecem a tal padrão?”. A maldição da beleza grega é algo avassalador. Em muitos casos é um empecilho à realização e, por fim, à felicidade de um sem número de mulheres no mundo inteiro. Regimes impossíveis, academias de ginástica... Coisas que nem sempre vão fazer de uma gordinha uma Miss. Coisas que não vão fazer uma negra ficar branca. Ou uma mulher de 40 e poucos ter 20. A beleza como um atributo exclusivo dos jovens também é um paradigma da Grécia clássica, diga-se.
John Lennon e Yoko Ono é um dos mais lindos casais de que tenho notícia. Lennon era rico e assediado por mil mulheres. Poderia casar-se com uma modelo “padrão”. Redundância minha aqui: modelo e padrão são basicamente a mesma coisa. Mas ele encantou-se com uma artista plástica oriental, chamada por todos de feia, e seis ou sete anos mais velha que ele. Entre algumas brigas e uma breve separação, estiveram juntos até o dia do seu assassinato. Seu amigo Paul McCartney, após ter enviuvado de Linda McCartney, casou-se com uma modelo, Heather Mills, loura, linda e... sem uma das pernas. McCarteney poderia ter se unido a uma linda mulher que tivesse duas pernas, mas não achou isso o mais importante (hoje estão separados, provavelmente por incompatibilidade de temperamentos). Esses homens agiram, nos citados momentos de suas vidas amorosas, com o que posso chamar de independência estética, que foi o que sempre pautou, por exemplo, a obra dos Beatles, que, desta forma, fascinaram o mundo com sua música revolucionária. Eles viraram a música de cabeça pra baixo. E nos referidos relacionamentos com mulheres, não fizeram diferente. Foram além do modelo. Foram além da superfície. Além do preconceito. É muito comum hoje o uso da palavra preconceito referindo-se ao racismo, à homofobia e ao preconceito contra pessoas deficientes, idosos... O que não é comentado é o preconceito contido nas classificações “pessoa bonita” e “pessoa feia”. Meu Deus... Quanto demorará até que nossos produtores de cultura de massas descubram que estão produzindo miséria intelectual disfarçada de “beleza”? Concursos de beleza? Concursos de beleza infantil... imaginem! Nem as crianças estão livres da escravidão estética imposta por esses monstros. Temos hoje uma legião de mulheres infelizes, não por que estão doentes, não por que perderam um ente querido, não porque lhes falta uma parte do corpo, mas por que são constantemente cobradas “Seja magra”, “Seja bela”. Subliminarmente, “Seja bela como uma musa grega”. Na impossibilidade de atender a tais paradigmas, algumas rendem-se à tristeza, à frustração. E elas não estão loucas. Elas estão sendo verdadeiramente “sabotadas” em sua beleza natural e real, por uma mídia perversa e irresponsável que lhes exige algo que não têm, algo que não são, algo irreal. Que ser humano consegue ficar completamente imune a tantas tentativas de inferiorização externas? É a “beleza” produzindo tristeza. Não é pra isso que deveria existir a verdadeira beleza. E mais. A beleza está presente em todo o universo, é algo muito maior e mais vasto do que aquilo que é normalmente estampado numa página de revista. Podemos ainda indagar se não seria a beleza nada mais que um mito? Como a conhecemos, dentro do que foi imposto ao senso comum, ela é, sim, um mito, não tenho dúvidas. É uma pena que isso prevaleça, estando o mundo no avançado século da info-globalização. Que globalização é essa? Globalização da mesmice? Globalização do padrão restritivo, do que há de menor, de menos relevância num sentido de felicidade? E pensar que houve épocas de liberdade e diversidade estética muito maior... Uma lástima o que temos aqui.
Um lamentável poema de um famoso poeta é intitulado “Receita de mulher”. É um exemplo da distorção do belo a que as mulheres foram submetidas. Estive relendo o poema outro dia e senti enjôo. O autor é Vinícius de Moraes. Recomendo a leitura do texto na íntegra, para que se tenha uma noção do que “nossas melhores mentes” foram (são) capazes de produzir – um atentado contra a natureza humana, é isso que é o tal poema. O mais triste de tudo é saber que, em alguma medida, todos nós, indistintamente, somos influenciados por esses paradigmas. Mas, para meu próprio alívio, quero deixar um registro aqui: tanto Yoko Ono quanto as gordinhas de Renoir... São, para mim, lindas.
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