Ferreira Gullar
 
            Não era nada admirador da obra de Ferreira Gullar. Não sabia o motivo, o que já soa suspeito. Mas sempre admirei o homem.
            Gosto de ficar procurando as obras dos escritores famosos. Encontro “Metade”, poesia do autor que detém o Prêmio Camões de 2010. Ora, sendo a premiação máxima para autores de língua portuguesa, li com certa pressa.
            Quando cheguei ao fim, dei conta do meu preconceito, idiotice, seja lá qual nome tenha. Ferreira é uma de reserva espiritual profunda, e dono de uma escrita perfeita. Compreendo melhor João Ubaldo, que quando ganhou o mesmo prêmio, afirmou tranquilamente que se foi jubilado, foi porque mereceu.
            O mesmo acontece com nosso poeta magro, de longos cabelos brancos, simpático nas entrevistas, falante e descontraído, como Ubaldo.
            O poema de Ferreira Gullar, que li várias vezes, mostra bem a causa de ter tamanha fama. Não se repete, nem cai em mesmices, além de agradar muito.
            Passo ao poema.
 
            Metade
julho 5, 2007 in Ferreira Gullar
Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.

Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio…

Que a música que eu ouço ao longe,
seja linda, ainda que triste…

Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.

Porque metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.

Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.

E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.

Porque metade de mim é o que eu penso,
mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto,
um doce sorriso,
que me lembro ter dado na infância.

Porque metade de mim
é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.

Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.

E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.

Porque metade de mim
é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.

Porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor,
e a outra metade…
também.

 
Jorge Cortás Sader Filho
Enviado por Jorge Cortás Sader Filho em 06/07/2011
Código do texto: T3078974
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