Osório

Naquela primavera, quando a tarde refrescava, tinha início a reunião no sopé da pedra do Santuário. No centro do ranchinho improvisado para armazenar cimento e cal, Amâncio colocava, tirado sei lá de onde, uma espécie de caixote com uma gavetinha onde eram guardados os bloquinhos e o lápis. Nos bloquinhos os jogos eram marcados na figura de um trêmulo “xis” com bolinhas nas pontas. Era assim que marcavam a partida de sueca. Jogo de baralho com que os veteranos pedreiros e carpinteiros voluntários finalizavam a jornada de trabalho naqueles dias de reforma e ampliação do Santuário da Senhora da Pedra. Cada dia era uma labuta fazer chegar o material de construção até o Aldo da pedra. Roque do Lista Dorta subia e descia a escadaria levando cada vez, nas costas, um saco de cimento e dois de cal. Inacreditável, mas verdadeiro!

Recém vindo da clausura da Mantiqueira, eu gostava de me infiltrar no meio deles e ficar vendo aquele jogo alegre e cheio de causos. Apenas um daqueles senhores ia lá só pra apreciar e não jogava nunca. Chegava sempre muito discreto, dirigindo a “Brasília”, garantia de condução para o centro da cidade a quem se dispusesse a doar um dia de serviço na obra. Sentava-se num daqueles pequeninos troncos de eucalipto ao lado do caixote-mesa. Talvez tenha sido este silêncio e a cumplicidade de não participarmos da partida de sueca, o elo para que me aproximasse dele, e a seu lado passasse a assistir a animação “sueca” do Tião Paraná, Zé da Vilma, Roque do Lista, Amâncio, Donizeti, Hilário, Zé Rosquinha, Tucano, Quina e outros tantos. Rolava também uma garrafinha com pinga, mas disso fiz voto de jamais revelar ao sisudo padre Mário. Fica só entre nós.

Adotei aquele senhor como uma espécie de avô e sentia sua falta quando não aparecia. Algumas vezes, após rezar o breviário na matriz, o via sentado no banco da praça, em frente ao Correio, e o cumprimentava com uma inclinação de cabeça, como convinha a quem descia as escadas da igreja revestido do hábito dos filhos de São Bento.

O tempo passou e como a vida é cheia de surpresas, um dia descubro que estou para contrair matrimônio com uma de suas netas. Obra do acaso... será? Acaso nada!... Obra da ternura de Deus!

Só sei, meu avô Osório, que o neto que não fui na verdade das raízes e do sangue, te deu um bisneto real e de direito, que leva junto ao meu o seu nome, trazendo de sua neta em sua bagagem de essência, as tardes do Santuário da Pedra, onde a Virgem, invicta sentinela, sobre nossas famílias vela.

Osório partiu lentamente como um por de sol... Deus, que é mais solícito que todos nós, Ele dirá, tudo aquilo que eu poderia ter dito nesta crônica de palavras machucadas que hoje ofereço-lhe, quente das lágrimas da despedida, pois morreu com ele a infância dos seus filhos, ou antes ficou eterna. Pela primeira vez temos a impressão de caminhar sozinhos, e damos o primeiro passo. Nosso reencontro se dará à sombra de Deus.