Óculos escuros

Certamente era uma esposa exemplar. Ele, administrador de empresas, ela, do lar. Casara-se cedo. Tivera dois filhos: um arquiteto e uma professora. Agora, com 46 anos, bem que se passava pelos 35. Contava o tempo como se ele fosse culminar em algo pelo qual esperava, só não sabia em quê. Aliás, no fundo sabia, mas tinha um medo desse algo e imaginava que a coragem brotaria ainda a tempo. Quando a ansiedade extrapolava os limites de sua força, ia ao shopping.

Lá dentro, colocava os óculos escuros para enxergar melhor.

Sentava-se no café e pedia um preto com leite, waffer e uma pastilha de chocolate.

A garçonete se chamava Charlote. Por que pobre gosta tanto de nome estrangeiro? Seria para se impregnar de uma personalidade que não possui? Ela se chamava Paula, mas vivia uma vida que não era dela.

O amargo do café forte brincava com o cacau no céu da boca. Os olhos, atrás dos óculos escuros, miravam nas pernas de Charlote. Duras e torneadas sabe-se lá por que suplícios. Calçando a rasteirinha de sempre.

Depois do café, foi às roupas.

Luisa a recebeu com aquele sorriso largo de vendedora. Tinha cabelos loiros longos até o quadril. Equilibrava-se num salto harmoniosamente. Os olhos de Paula a viam em câmara lenta. Fitavam nos lábios moles e úmidos de Luisa refletidos no espelho do provador:

- Paula, essa calça embeleza ainda mais suas pernas, lindas, lindas!

Embora frio, Paula sentia seu coração arder. Comprou a calça para levar o elogio para casa.

Na perfumaria, pediu para experimentar a nova fragrância do hidratante. Kátia aspergia o creme em suaves movimentos circulares sobre as costas da mão de Paula. Os pés de Kátia eram uma coisa. Pequenos, alvos, os dedinhos simétricos e as unhas feitas. Paula via apenas alguns dedos, mas adivinhava a formosura dos demais. Os óculos escuros subiram dos pés aos seios, nos quais um pingente se escondia.

- Colarzinho bonito, o seu!

- É uma pomba. – Disse Kátia tirando da aresta de carne a ave banhada a ouro.

- No inverno, ela se esconde aí? – Perguntou Paula com um sorriso, empurrando os óculos com o indicador.

Levou o creme. E foi ao Hortifruti.

Onde estavam as tangerinas? Em Minas falam mexericas. Aquela fruta combina mais com qual palavra? Tangerina parece uma composição entre tangente e outra palavra. Qual? Ruborizou-se Pode ser, os gomos se tocam, mas não se fundem. Mexerica lembra mexer com outra... Hum.. qual? Ruborizou-se novamente. Ainda bem que os óculos eram grandes e tapavam suas bochechas vermelhas de atrevimento.

Pegou um exemplar do fruto cítrico e cravou as unhas na casca. Puxou-a suavemente, desfazendo a aderência do velcro. Os óculos miravam em dois gomos que deixou transparecer. Acariciou a película fina que continha o líquido alaranjado. A boca salivava advinhando a acidez que faria vibrar o corpo. Levou audaciosa a fruta à ponta da língua, que explorou o encontro dos gomos quase os separando.

Êxtase.

Jogou a fruta na banca e saiu apressadamente. A cabeça baixa, o dedo médio segurando os óculos no rosto. A passos largos, alcançou o toalete. Ofegante, parou diante do espelho. Inspirou e expirou quase que em uma só golfada. O suor brotava da fronte e ensopava as bochechas.A funcionária da limpeza, curiosa:.

- A senhora está passando bem, dona?

Num movimento rápido, escondeu os óculos escuros na bolsa, abriu a torneira e enfiou o rosto debaixo d'água.

- Estou ótima, mas às vezes o fogo da menopausa me incendeia a cabeça.

OBS. Está crôncia também está em áudio, narrada por mim, com alguns arranjos sonoros. Você pode ouvi-la clicando aqui.

Wellington P. Coelho
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 06/07/2011
Reeditado em 17/07/2011
Código do texto: T3078824
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