DOUTORES

Esta não é uma história de sucesso daquelas muito usadas no marketing da vida de campeonato a que estamos todos mais ou menos sujeitos. Mas o fato é que a minha amiga de longas datas, a Eliete, criou o seu filho mais velho com uma renda razoável, auferida das vendas de calcinhas, soutiens e cosméticos de porta em porta.

Ela deixou um emprego como técnica de nível médio em uma grande empresa e aventurou-se na cidade grande, pois queria prosseguir seus estudos em busca de uma história de sucesso por meio de títulos de graduações acadêmicas. Virou engenheira, depois mestra e atualmente é uma respeitável doutora cuja tese foi defendida em uma universidade portuguesa que a convidou e lhe forneceu uma bolsa de estudos para o doutoramento.

Antes disso, aumentava a renda de suas vendas com aulas em colégios particulares. Uma aventura estafante mas com um final que se esperava compensador. Afinal, quase todo mundo pensa em fazer uma graduação e se dar bem no mercado de trabalho. Ela, com a experiência das salas de aula e duas pós-graduações não tinha a menor dúvida.

Pois não é que ela me disse que está pensando seriamente em voltar a vender calcinhas, soutiens e cosméticos de porta em porta? O pessoal da academia está horrorizado com a ideia dela. O pessoal que eu estou dizendo é uma meia dúzia de gente que conseguiu se firmar com um salário “alto”, daqueles que um jogador famoso disse outro dia que gasta só em produtos para seu cachorro todo mês. A sua indignação cresceu ainda mais porque foi convidada para apresentar um trabalho científico num congresso no México e ela simplesmente não tem recursos para bancar a viagem. Também tem propostas para voltar para a Europa (Portugal e Espanha) mas não quer sair do Brasil. Agora com mais uma filha ainda pequena, queria que sua história de sucesso se desse por aqui mesmo.

Eu fico pensando em quantos doutores (de verdade) não temos em condições semelhantes por ai. Há dias, voltando do centro da cidade numa chuva torrencial eu peguei um táxi cujo dono é um doutor em física e me disse que os cerca de seis mil que ganha com táxi são mais do que todas as propostas de trabalho que teve como professor. Meu colega de exercícios na fisioterapia me contou que definitivamente cansou de ser doutor, que passou praticamente toda a sua juventude dedicada aos estudos, cansou de ter que ficar esperando o dia em que o Brasil vai valorizar seus pesquisadores e abriu uma loja de artigos femininos. Ele brincava, dizendo que, afora o futebol e a música, há três coisas que são garantia de ganhar dinheiro nessa pátria amada, sem precisar estudar muito nem se preocupar com possíveis crises: investir em artigos para as crianças, para as mulheres e alimentação. Naquele momento passava um carro na rua com uma música estridente sem sequer uma letra compreensível, pelo menos. Imaginei que o dono devia ser um feliz protagonista de uma história de sucesso sem precisar ser educado. Nisso eu me lembrei de uma antiga música do saudoso Zé Rodrix que começava assim: “quando será o dia da minha sorte? Sei que antes da minha morte, eu sei que esse dia chegará.” (Sai de lá cantando).

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 02/07/2011
Código do texto: T3070086
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