Prêmio no Presídio

Nesta quarta-feira, dia vinte e nove de junho, passei por uma experiência... uma experiência que... Não! Não consigo encontrar um adjetivo que resuma a sensação completa. Creio que precisarei descrevê-la por extenso.
Há algumas semanas a minha grande amiga Carmen Gramacho, me fez um convite que muito me orgulhou: atuar como jurada num concurso do Casa do Saber, Projeto que surgiu em 2007, com o objetivo de levar bibliotecas públicas às regiões mais carentes do Distrito Federal. É organizado e patrocinado pelo grupo GASOL, sob a coordenação dessa minha amiga tão especial, enquanto integrante do Conselho Superior da Associação Comercial do Distrito Federal – ACDF.
Todo concurso literário visa premiar talentos e incentivar vocações. Este não era muito diferente, exceto por um detalhe: todos os participantes, embora estudantes, são internos dos presídios que compõem o sistema carcerário do DF: seis unidades, sendo cinco delas masculinas.
Infelizmente, apesar de aceitar o convite imediatamente, um outro compromisso junto ao Sindicato dos Escritores impediu-me de participar das avaliações. Confesso: fiquei muito decepcionada. Porém, compreendi a urgência na conclusão dos trabalhos que inviabilizaria ajustes de agenda e concordei em participar apenas da cerimônia de premiação, entregando um exemplar de meus livros, devidamente autografado, para cada um dos três primeiros colocados de cada unidade prisional.
Li as dezoito redações premiadas. O tema era o que a biblioteca teria mudado na vida deles e as respostas falavam de transformação, liberdade, fantasia, consolo, conhecimento, aprendizado, esperança.
Minha intenção era autografar cada livro da forma mais personalizada possível, aproveitando o máximo de informações que consegui absorver de cada texto.
Uma tarefa para fazer com tempo e calma, mas, esta semana foi difícil para mim. Uma gripe incomum roubou-me preciosas horas produtivas e vi-me assoberbada de atividades, ao ponto de virar a noite anterior ao evento para conseguir concluir parte delas, dentre as quais, os autógrafos, que consegui fazer como o planejado, mas sem uma segunda leitura aos textos, que teria sido muito útil.
Para complicar, a cerimônia que estava inicialmente programada para ocorrer no período matutino, teve que ser alterada e eu, não observando isso, negociei minha liberação com a chefia no período errado e aceitei a convocação para uma reunião de trabalho à tarde. Ou seja, tudo caminhava para que eu não pudesse comparecer. Felizmente, problemas contornados e, às 13h20, peguei carona com a Carmen e o André (designer, fotógrafo e assistente de produção do grupo GASOL), rumo ao Gama, cidade satélite do DF onde fica o Presídio Feminino.
O local é tenso. Conheci Charlene, coordenadora das bibliotecas dos presídios que foi muito feliz na comparação: presídios são galinheiros com gente dentro. Por mais que se arrume, enfeite ou decore, as grades por todo lado e o clima pesado que reina num ambiente onde duas forças conflitantes são obrigadas a conviver, será sempre sufocante e triste.
Quando chegamos, alguns dos presos que vieram das outras unidades para a cerimônia estavam sendo desembarcados. Se você já se sentiu desconfortável ao ter que estacionar ou passar próximo a um carro forte no momento da movimentação monetária de uma agência bancária, tem uma vaga idéia do que sentimos. A escolta, policiais vestidos de preto, com cara de poucos amigos, escopetas e revólveres à mão, posicionou-se em volta da van e do caminho por onde eles passariam, num clima bastante nervoso, enquanto eles saíam, algemados uns aos outros. É estranho ver homens, alguns muito jovens, quase meninos, sendo tratados como se fossem tão ameaçadores. Ainda mais estranho ver tantas armas juntas.
Depois que todos estavam acomodados no auditório, pudemos entrar. Era uma grande sala com duas fileiras de bancos de pedra. Em cada um deles, três detentos, que permaneceram algemados durante todo o evento, os três da frente, com os braços pra trás. Seriam os mais perigosos ou a precaução deveu-se só pela maior proximidade deles para conosco? Em volta dos bancos, em pé, ocupando as duas paredes laterais do recinto, os policiais da escolta.
O evento foi muito interessante. A poeta Lilia Diniz fez uma bela interpretação de poemas próprios ou não. Cantou, tocou pandeiro e encantou. Inclusive a mim que, num determinado momento, vi-me sozinha completando a letra da música que ela interrompeu para que a platéia participasse e os internos, intimidados, não tiveram coragem de completar.
A entrega dos certificados e dos meus livros foi muito parecida com qualquer entrega de prêmios que eu já vi, tirando claro, a movimentação dos carcereiros para liberar o premiado de suas pulseiras, de modo que ele pudesse ir até a mesa de autoridades, e recolocá-las ao seu retorno.
A cada livro entregue, dei uma lidinha nas dedicatórias, para lembrar-me da redação e a cada um, dei uma palavrinha especial.
Ao final, fui convidada ao microfone, apesar de ter avisado que não havia preparado nada para dizer àqueles rapazes e moças, por falta de tempo.
Queria ter escrito um belo discurso, com palavras de incentivo ao estudo, à leitura, à escrita. Dizer-lhes que comecei, ainda adolescente, escrevendo poesias sofridas a cada amor fracassado. Acrescentar que, sendo gordinha e meio nerd (naquela época, dizia-se CDF), foram muitos os poemas chorosos e magoados. Contar a eles que, anos mais tarde, a esses versos tristes, vieram juntar-se algumas crônicas, despretensiosas brincadeiras entre amigos e que os contos vieram da vontade de inventar, bancar Deus, criando personagens e construindo suas existências literárias.
Queria explicar que assinava como aprendiz e aprendiz ainda me sinto, embora a vontade de escrever tenha se tornado tanta que desembocou nos dois livros que publiquei e nos mais de 700 textos que produzi.
Diria a eles que, assim como aconteceu comigo, em que a escrita era apenas uma forma de desabafar meus dilemas juvenis, eles também podem se valer deste artifício e lançar no papel o seu lamento. Aos poucos, cada um irá sentir segurança para alçar outros vôos, falar de outros assuntos, fazer rir, fazer sonhar, crescer, transformar.
Bagagem de vida, eles têm! Viram e viveram muitas coisas que a maioria de nós só conhece de ouvir falar. Quanta riqueza suas histórias teriam? Quantas vidas, risos, dores, mortes, bênçãos, filhos, pais? Quantas linhas na palma da mão, nas páginas, papel de pão, nos livros a publicar?
Citar o dito popular que diz que um sonho nunca está alto demais para quem tem coragem de construir os alicerces que os sustentem.
Enfim, não podendo preparar esse discurso, escondi-me covardemente nas palavras e sonhos deles mesmo, aquelas que consegui me lembrar de ter citado nos autógrafos.
Pensando bem... Que bom que foi assim!! A cada um que se reconhecia em minhas palavras, um sorriso, o afago tímido dos “colegas”.
Foi um momento único, especial, doce! Todo o evento foi mágico e, acredite, por mais triste que seja a visão de uma audiência tão diferente, com metade do público algemada e a outra, armada até no espírito, fiquei muito feliz, muito honrada, orgulhosa. E, talvez, justamente o que mais me emocionou, foi a utópica esperança de podermos fazer alguma diferença em trajetórias de vidas tão miseravelmente tortuosas.
Foi um prazer enorme conhecer as outras pessoas envolvidas nessa ação: Andréa, Charlene, professores, autoridades, reencontrar a Isa, dedicada bibliotecária, sem a qual seria impossível a montagem das bibliotecas do Projeto e o Antônio Matias, Diretor da GASOL que se dedica pessoalmente ao desenvolvimento das diversas campanhas sociais realizadas pela Empresa.
Foi bonito ver as moças chorando e rindo de emoção, os rapazes apoiando e incentivando uns aos outros, a preocupação de um dos professores para corrigir a minha gafe de trocar o nome de um dos detentos no autógrafo (era Basílio, coloquei Batista, que foi o que consegui ler na xérox meio apagada) e correu à procura de uma caneta parecida à que usei...
Ao final restou a gratidão por ter podido fazer parte disso tudo. Se, de todos esses homens e mulheres que, por passos equivocados chegaram até ali, um, apenas um deles, motivado por ações como esta, for capaz de tomar o caminho de volta à cidadania, certamente terá valido a pena.


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A foto acima mostra a Carmen num outro evento do Projeto, a inauguração da Biblioteca Carlos Drummond de Andrade no Complexo Penitenciário da Papuda.
Dá para ter uma idéia...
Quando tiver acesso às fotos da premiação, acrescento aqui.