SÓRDIDA SOLIDARIEDADE

Ao estacionar o carro, o garoto aproximou-se de mim; cabeça raspada, meio arisco, mas não trazia o ar “falsamente compungido”, comum nas pessoas que esmolam nas ruas.

- Moço, estou pedindo uma ajuda: compra minha bala?

O seu olhar e o jeitinho simpático me comoveram. Um filete de “solidariedade” brotou da minha comoção, “traduzida” na nota de R$ 5 que entreguei a ele.

- Hoje eu não tinha esperança de vender balas.

- Onde você mora?

O garoto espantou-se, discretamente, com a minha pergunta e após um momento de silêncio, fitou-me com certa curiosidade e, docemente empolgado, desfiou a sua história.

Contou-me que não conhecera o pai; morou com a mãe e mais quatro irmãos até o dia que cansou-se de apanhar do padrasto, que sempre chegava bêbado em casa... Resolveu fugir sem deixar rastros.

Um dia pensou em voltar, mas já pertencia a outro mundo e, sem ajuda, tornou-se uma pessoa de rua, de fome, de sujeira e de doença, cuja esperança, cujo brilho se recobriu de camadas e camadas de desânimo e isolamento. Entregou-se. Desistiu de voltar.

Do outro lado da rua, clareada pela luz macia do sol poente, a grande seringueira aninhava, em seus galhos, pássaros em revoada, que procuravam um abrigo seguro para mais uma noite de repouso.

O garoto despediu-se de mim com um “Deus lhe pague” e, deslizando entre os automóveis como uma sombra, atravessou a rua, sentou-se embaixo da velha árvore; desafivelou uma maletinha, retirando dela um pedaço de pão aparentemente endurecido e, partindo-o ao meio, dividiu com o cachorrinho que, correndo ao seu encontro, não lhe negou lambidas de intimidade. E, ali, de cócoras, encolhidinho, parecia pensar na vida com olhares perdidos, enquanto acariciava o seu fiel amigo.

Os meus pensamentos flutuaram no vazio e as minhas esperanças pareciam também fugir em revoada, no limiar da tristeza, ao perceber que, para o garoto, até sorrir se tornara um fardo.

E nessa toada, que acontece à deriva de nossa vontade, é inevitável que cenas, como essas, provoquem alguns sentimentos...

Pensei nos cinturões de miséria em torno da cidade, do país, nos mais de um bilhão de pessoas que vivem abaixo da linha de miséria por esse mundo afora - números que traduzem a gravidade do problema, mas escondem o desespero dos que não sabem o que vão comer, onde dormir e como chegar ao dia de amanhã.

E nós, de braços cruzados, continuamos a comprar o último modelo de celular, mandamos nossas crianças para a Disneylândia, erguemos grades em nossas janelas, muros altos nos quintais e cimentamos também o coração.

E, assim, vamos nos contentando em oferecer o pão amanhecido sem pensar que, digerida a esmola, em forma de alimento ou sabe-se Deus de que outra forma, dilata-se de novo o oco na barriga, aguçando novamente o buraco negro da cidadania e, mais que isso, na complexidade da vida, lá no fundo do coração, percebem-se sustentados por um vazio maior ainda, traduzido pela falta de amor e da esperança, onde estão inseridas todas as razões para viver.

Enquanto isso, o direito à cidadania fica restrito, sempre, aos discursos.

Materialmente prepotentes, espiritualmente indigentes, com os desejos cabendo num cartão de crédito, ainda acreditamos que rezando “perdoai Senhor as nossas faltas”, estaremos dotados de uma graça especial. Assim, ao encaminharmos aos céus as nossas ressonâncias emotivas, vamos sempre renovando a nossa cumplicidade tática para nos sentirmos redimidos.

Meu Deus, como é sórdida a nossa solidariedade!

Carlos Roberto Furlan

Engenheiro Agrônomo/Professor