O resgate do meu vestido amarelo

Namorávamos há quase três anos. Marcamos o noivado para Janeiro e o casamento para Setembro. Marcos era doze anos mais velho, na época. Eu tinha vinte e três, e ele trinta e cinco. Nosso relacionamento era estável, equilibrado e cuidadosamente planejado. Nenhuma briga, nenhum excesso. Tudo era, organizadamente, premeditado, repensado e resolvido. Marcos era um conceituado empresário na área de engenharia. Tudo em sua vida era medido, milimetricamente. Penso que até o seu amor por mim! Enfim o noivado, a troca de alianças e as juras de amor eterno. Para comemorar, Marcos sugeriu uma semana de férias em Fortaleza. No dia e na hora marcada, embarcamos rumo às dunas. Chegamos ao hotel um pouco depois das dezenove horas de uma quinta-feira. O calor era insuportável! Estava ansiosa por conhecer o local, passear pelas avenidas da praia, comprar uma tornozeleira de palha da costa, tomar um drinque com suco de maracujá, dançar no sereno da noite, fazer amor na madrugada do mar, rolar nas areias da praia até me afogar numa geladíssima água de coco degustada ao luar.

Marcos parecia não compactuar com meus planos. Tinha planejado tomar um banho gelado, comer uma porção de batata frita e descansar da viagem. E foi exatamente isso que ele fez: vestiu seu impecável pijama azul marinho e “apagou”, sem nem mesmo esperar as fritas!

Inconformada com aquela situação, levantei da poltrona de vimi e desfiz as malas. Vesti um gracioso vestido amarelo por cima do biquíni, prendi os cabelos numa ousada e comprida trança, enfiei as rasteirinhas de couro apressadamente e desci para o saguão... livre, leve e louca! No bar do hotel pedi o tal drinque com suco de maracujá. Tomei três, sem pestanejar! Na mesa ao lado, percebi um rapaz me observando. Por um momento nossos olhares se cruzaram. Pairei, sob alguns instantes, na misteriosa retina daquele encanto. Sozinho, o moço tomava uma água de coco, vagarosamente. Vestia uma bermuda clara de brim deixando a mostra os joelhos torneados e as pernas musculosas. Uma camiseta branca, meio larga, exibia grandes ombros morenos, lindamente bronzeados e absurdamente fascinantes. Pés libertos. Descalços. Sua idade não ultrapassava a faixa dos 25. Quase um adolescente. E que adolescente, Meu Deus! Aquela pele matizada, aquele corpo pecaminosamente definido, aqueles lindos e enormes olhos azuis me hipnotizavam. Pisquei os olhos algumas vezes para ter a certeza que aquela bela paisagem era real ou apenas uma miragem ainda não redefinida pelo hálito quente dos meus desejos.

Um tsunami de emoções iniciou o percurso desenfreado pelo meus sentidos, atordoando-me instantaneamente.

Para escapar da tentação de ensinar aquele garotinho a se barbear ou mesmo a ajudá-lo nas aulas de álgebra ou de filosofia, caminhei ainda trêmula pelas areias úmidas da orla, tentando em vão refrescar os pensamentos borbulhantes que insistiam em permanecer frente a lucidez dos meus votos de fidelidade.

Já passava das oito e meia da noite. Nenhuma brisa para refrescar os meus devaneios. Nenhum movimento ousava desestabilizar o silêncio que ecoava daquele secreto e inebriante cenário. Cerrei os olhos e mergulhei entorpecida pelo desejo flamejante que consumia vagarosamente todos os meus sentidos, insistindo, mesmo sob recusa, a percorrer os caminhos mais íntimos da minha pele. De súbito, a maresia entorpeceu a racionalidade dos meus pensamentos. Fiquei ali, quieta, de frente para aquela maravilha, deixando que o mar beijasse cada centímetro dos meus pés. Devassa, aceitei a carícia e a saliva ofegante do embalo deliciosamente envolvente daquelas águas. Libertei, aos poucos, as amarras da minha insegurança. Deixei-me envolver com a enigmático gingado das ondas. Naquele momento insalubre, quase senti o calor abrasante do seu abraço. Na intrepidez de um segundo, fechei os olhos para os previsíveis planejamentos da minha vida. Adentrei nas ondas do meu desatino, despindo-me de todos os medos e falsos moralismos. Joguei-os longe. Deixe-os espatifados sobre a areia fria da minha vida, bem ao lado do meu vestido amarelo. Me permiti deitar, nos braços da maré, por um tempo incalculável. Vez ou outra lembrava de Marcos e seu estúpido pijama azul-marinho. Vez ou outra, lembrava do moreno sedutor, de pés descalços, parecendo flutuar sem destino pela vida. Sem culpa, sem passos ensaiados, sem rotas definidas. Livre como a autonomia daquele momento. Doce como a água pura daquela fruta. Enigmático como a despretensiosa loucura dos meus pensamentos. Apavorada com a minha insensatez, abri os olhos. Apesar da sensação única de desprendimento, era preciso voltar para a metódica realidade da minha vida. Ainda dentro da água desfoquei meu olhar para a areia. Pressenti um vulto observando minhas insanidades. Firmei o olhar no contorno daquele rosto ainda desconhecido e disforme. Seu sorriso iluminou o ondulado dourado dos seus cabelos. Desci meus olhos para examinar com mais cuidado aquela miragem. Os braços longos e definidos, seguravam maliciosamente os próprios joelhos apoiados pelo queixo. A praia estava praticamente deserta. Procurei, desesperadamente por uma pista. Firmei o olhar na areia... pés descalços... era ele! Um frio gelado percorreu minha espinha. Sensação que não aparecia desde o meu primeiro beijo, com treze anos. Escondendo um nervosismo fora do comum, direcionei os passos rumo ao meu vestido, porém não encontrei-o. Pressentindo meu embaraço, o moço perguntou com um sorriso despudorado e cínico: “Um beijo por um vestido amarelo?”

Num ímpeto de loucura, encaixei minhas pernas entre suas coxas, aceitando descaradamente a proposta. Agarrei parte da imensidão das suas costas bronzeadas com minhas mãos inquietas, afundando meus dedos naquela vasta cabeleira dourada. Com os meus joelhos travados entre seus braços musculosos, ofereci minha boca sem esperar qualquer aceitação. Experimentei naquele momento o gosto da sua pele e da sua saliva. Nos beijamos por intermináveis minutos. No êxtase daquela loucura desenfreada, nos entregamos um ao outro indescritivelmente. A lua foi a testemunha ocular dos nossos desejos proibidos. O mar, meu álibi. O vestido amarelo? O refém que libertei das garras daquele adorável bandido. Entre as carícias sobre a areia, e o cheiro de prazer que exalava diante daquele gosto de pecado, renasci. Nada e ninguém poderia interditar aquele momento único. A culpa, que antes insistia em contaminar a lucidez dos meus desejos, tornou-se aliada do meu gozo interminável e absolutamente incomparável. Agora era apenas: corpo, alma, coração e vida, numa única essência. Coração e boca pulsando ritmicamente. Salivas doces e quentes alternando-se entre palavras desconexas e frases excitantes. Ritmos acelerados em busca de um porto seguro. Enfim, o abraço firme. E a espera por um tempo que a saudade jamais há de abandonar. Confissões momentâneas. Risos. Olhares. Toques. Preferências. Sonhos. Momentos únicos de contemplação. Juras de amor eterno. Não falamos nada sobre nosso passado. Nunca soube seu nome. Ele nunca soube o meu. Para ele fiquei eternizada como a moça do vestido amarelo. Para mim, ele ficou eternizado como o moço dos pés descalços. Tenho pra mim que aquele moço era um boto. O fascínio que exerceu sobre meu ser não foi real, foi mágico! Seus intensos olhos azuis faziam parte de algum oceano, ainda não descoberto. Tudo conspirava para essa crença: seu adeus inesperado ao alvorecer, sua ausência contínua naqueles intermináveis dias, sua magia, seu olhar, sua sedução.

Guardo até hoje aquele vestido amarelo. Ainda sinto o cheiro de maresia impregnado no tecido, sem viço. Aperto-o contra meu peito e revivo a pecaminosa insanidade daqueles nossos desejos.

Se aquele deus era um boto, eu não sei! Só sei que aquela lembrança jamais ficará desbotada nas páginas da minha vida. Ahhhhhh, deixa eu guardar essas lembranças no baú da minha memória porque estou atrasada. Preciso preparar o jantar e ainda passar o maldito pijama azul-marinho do Marcos...