AS ÁGUAS PASSARAM

Certamente você não lembra mais das pilhérias, das zombarias, das piadas, e nem faz tanto tempo assim que as esbravejava irônico à minha chegada. Parecia existir uma verdadeira aversão de sua alma em relação à minha, de seu coração no tocante ao meu. Eu percebia o quanto era do seu mais supremo agrado ser sarcástico comigo, tudo com o específico intuito de espezinhar, magoar ou ao menos tentar angustiar-me de alguma forma e o mais possível. A meu respeito suas palavras vinham sempre no triste formato da crítica, da indiferença, do implacável desprezo. Você se regozijava em pisar-me utilizando-se do método mais cruel e infame, as frases pronunciadas em tons e frequências capazes de penetrar com ímpeto e profundidade no mais recôndito do meu eu. O problema é que você discordava, absoluto e sintético, do meu estilo de vida, me xingava, às vezes fazendo uso de calculada sutileza, porque meu comportamento seguia sempre o padrão do cidadão exemplar, do pai de família cuja educação dada aos filhos fugia à orientação declinada por seu comportamento e sua maneira de ser.

Eu bem gostaria de sabê-lo lendo esta missiva, de fazê-lo relembrar cada instante de outrora. Ah, a surpresa estampada no seu rosto ante o inesperado do que aqui encontraria com certeza não me surpreenderia, bem sabemos como o tempo e os sofrimentos transformam o caráter dos seres humanos. O passado, é óbvio, provavelmente já encontrou refúgio em algum porão sombrio de seu cérebro e afogou-se nas entranhas do esquecimento. Contudo, não pereceu de vez, e as lembranças, que inevitavelmente estarão lá em sereno dormitar, sempre despertarão e serão reavivadas por textos reveladores vislumbrados por seus olhos. Seu olho direito, diria melhor, porque o esquerdo a doença consumiu levando de sua visão uma parte colorida do mundo.

Sabe, creio mesmo ser o ressentimento algo tal qual água da chuva arrastando-se chãos afora até aos rios, e daí seguindo lentamente para o mar até desaparecer por inteiro misturada ao interminável fluxo para ali direcionado de todos os lados. Vejo a vida e seus reveses assim. A dor desaparece à medida que o tempo passa e aquele ou aquela que a infligiu se torna digno de misericórdia por parte de sua vítima. Assim também comigo, bem assim decerto em virtude do que você tem suportado ao longo dos últimos anos. Passeio agora por velhas recordações dolorosas tão-somente para que reveja pequenos tópicos com vistas a se tornar claro aos seus sentimentos o que o tempo pode fazer com as mudanças ocorridas em nossas vidas. Talvez, se pudesse, acredito que você desfaria ou refaria tantas coisas que disse ou fez, não? Voltar no tempo vinte anos seria suficiente para alterar seu hoje estado de enfermidade para o alívio de ânimo e saúde? Piamente ouso acreditar nessa hipótese, até porque seu estilo de vida haveria de ser alterado, não aconteceriam mais as homéricas farras, uma reeducação alimentar evitaria a diabetes, o entupimento das coronárias e as possibilidades alarmantes de infarto repentino. Sua visão continuaria perfeita e saudável. Naturalmente entraria em sua rotina o exercício físico ao menos três vezes na semana e é certo que você se sentiria outra pessoa. O que se foi, todavia, se tornou indelével, só restarão as consequências inevitáveis.

Agora, no entanto, é impossível passar uma esponja nos acontecimentos registrados pelo livro da vida humana. Voltar e deletar as pegadas do ontem não é possível, tornou-se tudo irreversível. Dar-me-ia razão no atual estágio de sua existência, ou permaneceria sem dar o braço a torcer, irredutível? Opto por conjeturar que o bom senso o faria refletir e dar a mão à palmatória. Eu nunca me atrevi a dizer-lhe para deixar o vício da bebida, nem para cuidar do corpo e da alma, mas você, pelo meu mutismo ou distanciamento em relação ao seu modus vivendi, disparava seus petardos mortíferos por eu ser abstêmio e procurar levar minha existência nos parâmetros do axioma mens sana in corpore sano. E como jogava pesado! Por instantes assisto a dois simultâneos períodos de seu viver em minha memória, o ontem e o hoje, e pergunto: valeu a pena o desperdício de sua vida para ser o que nisso você se transformou? Deixo no ar a indagação. Nossos erros precisam servir de lição para os que ainda não erraram tanto quanto erramos.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 28/06/2011
Reeditado em 02/07/2021
Código do texto: T3063475
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