DDD - Diário de Derrotas [2]

06h05

O telefone toca. Quem é o desgraçado desocupado filho da puta e sem coração que me acordou antes do sol nascer e do galo cantar e ainda por cima nesse frio do capeta? O telefone continua tocando e eu quero dormir. E eu durmo.

06h06

Levanto assustado e corro pro telefone tocando. Atendo e a pessoa já desligou. De repente lembrei que meu celular está morto e minha mãe levou o carregador pro trabalho e que eu havia pedido pra minha garotinha me acordar. Fofa, né? Deito, e penso em dormir só mais “cinco minutinhos” – o fato de que não há como medir cinco minutinhos sem um soneca de celular em algum cantinho obscuro do subconsciente. Mas o telefone toca de novo e eu atendo e é ela. E levanto.

07h21

Estou atrasado, eu sei. A hora passou rápido demais enquanto eu procurava uma meia menos encardida do que a que usei semana passada inteira e do que essa daqui que acabei de tirar do varal e que tá mais encardida do que a outra. Vai a do varal, mesmo.

09h31

Não tem nem dez minutos que cheguei e a voz do além já está me dando nos nervos. E eu já tenho pelo menos três horas previamente consumidas de atividades externas – o que é ótimo.

10h00

Saio em direção ao STF. Normalmente venço o trajeto de 20 minutos na caminhada, mas hoje, que estou de desbunde, peguei um ônibus. Minha intenção é poupar o tempo da caminhada e aproveitá-lo lendo este jornal que está sob meu braço lá no Vão Livre do MASP.

10h15

Quanta criancinha de uniforme enfileirada e ouvindo o instrutor! Ah, conheço esse cara de mil outros roles; já já o filho da puta vem aqui me pedir cigarro ou dinheiro pra comprar cachaça. Ele não parece em nada com alguém que mora na rua e que vive de mendicância; deve ser um playboyzinho nojento que assistiu novela demais e decidiu se rebelar contra os pais e o sistema – mas esse jaquetão de couro e essa barba feita à máquina não me enganam. Bom, vou ir lá pagar esse negócio.

10h16

O termômetro diz que agora estamos com 10°c no lombo... Porra, poderia ficar assim pra sempre!

10h30

Foi mais rápido do que eu imaginava lá no banco... Agora estou sentado num banquinho, dentro do Parque Trianon, assistindo o que parece ser uma aula de pintura. Tem um pessoal com pouco menos que a minha idade com uns fones e uns cadernos em mãos e um cara no meio com uma espécie de headphone – daqueles com saída pra voz – e uma gostosinha ora filmando uma estátua, ora filmando o ser do centro – de modos afeminados e franceses (?) – que parece ser o professor. Daria quase tudo pra ser uma daquelas pessoas ali. Menos a minha personalidade e o meu talento pra quase tudo que me proponho a fazer. É uma pena que eu não me proponho a fazer nada e nem tenho vontade de fazer coisa alguma...

11h15

Cheguei, entreguei os documentos, tomei um café e já saí novamente. Novamente estou dentro de um ônibus – o quinto do dia, se não me engano. Sono... Um sono safado e traiçoeiro me consome, no momento.

12h39

Depois de ter feito as missões na Praça de Sé e na XV de Novembro e na Brigadeiro Luis Antônio e no Cartório da Flávia e na José Bonifácio (se faltou seu ar ao ler isso sem vírgulas, ponha-se no meu lugar – ponha-se no lugar das minhas pernas, pra ser mais exato – e pense dez vezes antes de cogitar pensar que eu reclamo demais)(e, para tanto, incluindo mais três ônibus no cartel de hoje), voltei ao escritório e o dito cujo estava vazio e com as luzes apagadas – todos almoçando ou em reunião. Ótimo! Fiquei um pouquinho na internet e conversei mais ou menos com a Cacau – porque bem na hora que entrei no MSN, chegaram algumas pessoas que, né, complica um pouco e aproveitei pra mandar o milésimo e-mail pro Mackenzie solicitando uns documentos de uns ex-ilustres-alunos deles. Tendo resolvido parcialmente essa pendência com a ilustre universidade, desci pra almoçar.

14h05

Almocei num buraco chinês que tem na Alameda Santos que descobri na semana passada, passando lá com a Xapinha e com a menina Menezes. Na verdade, o que me atraiu mais a atenção foi o fato de poder comer à vontade por um preço que muito me é acessível na atual conjuntura. Agora estou sambando na cadeira por causa de tanta coisa misturada e com a blusa recendendo a gordura. Caralho.

15h00

As coisas que a Cacau me falou entraram de uma forma maravilhosa no meu pensar – é disso que eu gosto, de eletrochoques que me fazem ver as coisas de uma outra maneira. Mas esse desconforto intestinal tá acabando com a minha nobreza. Estou diante do japonês de sempre, no banco de sempre, e no horário de sempre. Ontem quando fui comprar o remédio pra dor de dente – muito eficaz, por sinal – encontrei ele na farmácia comprando remédio pra prisão de ventre. Ele não ficou muito feliz em me ver em tais circunstâncias e agora tá todo mudo, autenticando uma Gare atrás da outra. Quando ele terminou o último pagamento, eu coloquei o ponto final no CegoVia.

15h35

- E essa barba aí?

- Tava demorando...

- (Risos) É que eu tava te dando a chance de se tocar uma vez na vida, né...

- HAHAHA que mancada.

- Olha: você fica tão bonito sem essa barbinha JEGUE aí...

- Tá... Tô indo.

15h37

- Vixe, o que você tem que tá todo vermelho?

- Nada, não.

Olhei-me no reflexo do elevador. Olhei bem dentro do meu olho. Cadê o erro? Onde conserto? Raras são as pessoas que conseguem perfurar minha indiferença e descobrir o ser extremamente tímido que sou e que, tendo feito isso, conseguem me deixar sem graça. A desgraçada consegue me deixar parecendo um adolescente virgem diante de uma experiente e quente mulher mais velha, nuazinha em pêlo. Deve ser isso, mesmo...

15h50

Aqui estou eu, de novo, diante do japonês. Depois que paguei as Guias, tive de fazer uma outra carta de solicitação de uma parada bonita – a que eu fiz na sexta-feira não se mostrou de muita valia – aqui no banco e ainda estou meio chateado de ter levado bronca da moça alta que atende Pessoa Jurídica... Tudo bem que ela tinha razão, mas precisava ser tão sincera? De qualquer forma, enquanto ela procurava a papelada toda, descobri como se faz pra chegar ao primeiro milhão antes – ou na casa – dos trinta. Eu até tentaria começar a colocar tudo em prática, mas não pretendo viver tanto... (entenda como quiser).

16h30

Morena: Mas você já tá barbudo de novo?!

Loira: Creeedo!

Eu: E aí, vocês não acham sensual?

Morena: Ah, eu acho, mas tem que dar uma aparadinha, né...

Loira: Nem aparadinha; barba é horrível de qualquer jeito.

Eu: Então você gosta de um vampirinho do bem, né?

Loira: Não... É... Mas...

Eu: Bom, tá sexy que eu sei.

Loira e Morena: (sobrancelha erguida de puro descaso)

17h36

Gosto de trabalhar nesse lugar do caralho por causa da dinâmica toda; não fico enfiado numa cadeira com a cara enfiada num computador repetindo a mesma coisa pra um acéfalo impaciente no telefone ou no e-mail. Agora há pouco fiquei pendurando umas bandeirinhas de festa junina lá na parte da frente do escritório. Foi bacana colocar a escada ao lado da janela maior e olhar a Paulista lá embaixo. Enquanto executava meus dotes de arrumador de festa, mordiscava um Alpino aqui e uma bala de chocolate com menta ali e ainda olhava uma calça legging muito bem ajustada num corpinho feminino.

19h06

Depois da decoração não sobrou muito o que fazer... Quer dizer, tenho coisas a fazer, mas prefiro deixar pro dia seguinte, pra algum momento que não tiver realmente nada pra fazer. Deu pra sacar?

19h25

Hoje o mundo tirou o dia pra me dar bronca: acabei de levar uma da minha mãe por não ter acordado meu irmão pra ir pra escola.

- Mas mãe, tava frio pra caralho e ele tava todo quentinho lá dormindo... Maldade!

- Ai...

19h26

Vou pra casa – depois de enfrentar mais três ônibus (sobe o mouse e faz as contas).

27/06/2011

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 28/06/2011
Reeditado em 29/02/2012
Código do texto: T3063109
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